A inclusão de pessoas com deficiência (PCD) no serviço público brasileiro é, em teoria, um avanço constitucional e civilizatório. A Constituição Federal (art. 37, VIII), a Lei nº 8.112/1990, o Decreto nº 9.508/2018 e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) constituem um arcabouço robusto de proteção e promoção dos direitos desse grupo historicamente excluído. No entanto, quando essas normas são aplicadas a partir de uma visão burocrática e desumanizada, perdem eficácia. Em vez de ampliar acessos, acabam impondo barreiras — muitas vezes amparadas por pareceres e interpretações estritamente formais.
A lista PCD e a contradição normativa
A reserva de vagas para PCD nos concursos públicos existe para corrigir desigualdades históricas e assegurar acesso equitativo. Entretanto, em diversos certames, candidatos aprovados dentro do percentual reservado têm suas nomeações questionadas por órgãos de controle, sob o argumento de que teriam sido convocados “antes” dos candidatos da lista geral.
Essa interpretação é, no mínimo, controversa. A legislação estabelece percentual mínimo de vagas reservadas — não subordinação à lista geral. O critério é de proporcionalidade, e não de fila única. Trata-se de uma leitura restritiva que ignora o espírito da norma, a jurisprudência consolidada e, sobretudo, o impacto humano dessas decisões.
Controle externo: legalidade ou formalismo?
É inegável a importância dos órgãos de controle externo para assegurar legalidade e moralidade na gestão pública. No entanto, quando assumem uma postura puramente cartorial, correm o risco de desumanizar políticas públicas, reduzindo-as a números em tabelas — e pessoas, a códigos de matrícula.
A inclusão de pessoas com deficiência não é concessão graciosa do Estado. É obrigação constitucional e instrumento de equidade social. Tratar as convocações de PCD como desvios administrativos, sem considerar seu caráter inclusivo, não apenas fragiliza direitos como também compromete a confiança nas instituições.
Normas que existem apenas para constar
Quando dispositivos legais modernos e inclusivos são interpretados com rigidez formalista, transformam-se em letra morta. A reserva de vagas para PCD tem sido vítima desse processo: normas concebidas para garantir direitos acabam sendo utilizadas para restringi-los.
Estamos diante de uma contradição normativa: a lei que deveria proteger se converte em instrumento de exclusão. A inclusão passa a ser tolerada desde que não “atrapalhe” a fila — um raciocínio incompatível com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade material e da eficiência administrativa inclusiva.
O verdadeiro interesse público
É urgente repensar o que se chama de “interesse público”. Esse conceito não pode se reduzir à mera eficiência numérica ou à literalidade da norma. O verdadeiro interesse público reside na valorização da diversidade, na promoção da equidade e na concretização dos direitos fundamentais.
Um Estado que convoca candidatos PCD e depois invalida sua nomeação não promove justiça — promove insegurança e exclusão. E quando o controle ignora o impacto social de suas decisões, trai sua própria razão de existir.
Inclusão exige interpretação comprometida com direitos
A inclusão real não se faz apenas com editais e percentuais. Ela se concretiza por meio de vontade política, sensibilidade institucional e interpretações jurídicas alinhadas aos princípios constitucionais. Enquanto o controle público for refém de uma lógica binária — “regular” ou “irregular” — continuaremos reforçando um modelo de exclusão que fingimos combater.
Convocar pessoas com deficiência dentro da reserva legal não é irregularidade: é cumprimento da Constituição e das leis. Se os órgãos de fiscalização ainda não compreenderam essa realidade, talvez não seja a norma que precise mudar — mas a forma como a interpretamos. Uma interpretação que privilegie a dignidade humana, a equidade e o verdadeiro interesse público.
*Esse conteúdo pode não refletir a opinião da Comunitas e foi produzido exclusivamente pelo especialista da Nossa Rede Juntos.
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