Direto de Cambridge: 7 lições sobre transformação digital e inovação na gestão pública
A transformação digital tem sido um dos grandes desafios para a gestão pública brasileira – seja à nível federal, estadual ou municipal. Modernizar a gestão pública requer mais do que a digitalização dos serviços públicos, mas também a transformação na forma como o estado lida com os usuários de serviços públicos. Ou seja, é preciso mudar também a mentalidade.
Desde o início dos anos 2000, os governos no Brasil têm olhado para as transformações derivadas das Tecnologias da Informação e Comunicações (TICs). De lá para cá, as discussões avançaram até o momento em que o Governo Federal foi reconhecido como segundo líder em maturidade digital à nível global, por iniciativas como o Gov.br e o Pix.
No entanto, ainda enfrentamos desafios estruturais, como a fragmentação de sistemas, a baixa qualidade da conectividade em algumas regiões e a necessidade de fortalecer a confiança nas instituições. Para superar esses obstáculos, é essencial investir em lideranças preparadas para lidar com as novas soluções tecnológicas e transformar a forma como a administração pública lida com elas.
Com esse espírito, a Comunitas realizou em 2025 sua 6ª edição do Programa de Formação Internacional, em parceria com a StateUp e a Universidade de Cambridge. O tema central foi “The Digital State and the Digital Economy: Preparing for an Age of Resilience”, reunindo 24 lideranças brasileiras em cinco dias de imersão em Cambridge e Londres.
Com tantas tecnologias, plataformas e modelos de inovação disponíveis, é natural que surja a dúvida: afinal, quais soluções digitais são realmente capazes de transformar a gestão pública de forma inclusiva, eficiente e sustentável?
Se interessou? Continue a leitura para conferir os aprendizados práticos da formação!
1 – A tecnologia deve estar a serviço da democracia e da confiança pública
A transformação digital não pode ser reduzida a ferramentas ou sistemas. A grande lição é que a tecnologia deve ser um meio para fortalecer valores democráticos e não um fim em si mesma. Isso significa que a inovação precisa caminhar junto com:
- Inclusão: garantir que todos os cidadãos tenham acesso, inclusive em regiões com baixa conectividade.
- Transparência: assegurar que dados e processos sejam auditáveis, fortalecendo o controle social.
- Ética: colocar os direitos das pessoas no centro das soluções tecnológicas.
Na visão dos especialistas, Estados digitais resilientes são aqueles capazes de usar a inovação para o bem estar humano, ampliar direitos e reconstruir a confiança entre cidadãos e instituições. Ou seja, a tecnologia deixa de ser um fim e se torna um meio para ampliar oportunidades e reduzir desigualdades.
2 – A transformação digital não é linear, é feita em ondas
Os debates da formação mostraram que o desenvolvimento do governo digital ocorreu em etapas sucessivas, cada uma marcada por diferentes prioridades e desafios:
- E-government (anos 1990): digitalização de processos, formulários online e foco em eficiência.
- Digital government (anos 2010): criação de equipes digitais e serviços centrados no usuário.
- Digital-era states (pós-2020): expansão acelerada impulsionada pela pandemia com reestruturação institucional.
- Tech-enabled states (2024-): uso intensivo de IA, automação e dados em larga escala, consolidando o Estado como plataforma.
Essa evolução mostra que não há linha reta nem modelo único. Cada contexto exige adaptação constante, inovação institucional e liderança estratégica para que a digitalização não se torne apenas uma modernização superficial.
3 – Inovação em governo é sobre colaboração e ecossistemas
Um dos pontos mais marcantes da formação foi a visita ao ecossistema de Cambridge. O que faz da cidade um verdadeiro polo global de inovação não é apenas a excelência acadêmica de sua universidade, com centros de pesquisa de ponta e laboratórios altamente especializados, mas sim a forma como ela articula diferentes atores em um mesmo ambiente colaborativo.
O setor privado, por exemplo, desempenha papel central ao criar startups, atrair investidores e permitir que grandes empresas testem soluções em parceria com a universidade e o governo. Este, por sua vez, contribui ao estabelecer políticas públicas que favorecem a experimentação regulatória, criando condições para que ideias inovadoras possam ser testadas e escaladas. Já a sociedade civil participa ativamente de projetos que impactam diretamente o cotidiano, garantindo que a inovação não se restrinja a um círculo fechado de especialistas, mas se traduza em benefícios concretos para a população.
O aprendizado para o Brasil é evidente: nenhuma instituição inova sozinha. A experiência de Cambridge demonstra que a criação de redes colaborativas, que integrem academia, setor privado, governo e sociedade, é condição indispensável para que iniciativas de transformação digital sejam efetivas e capazes de gerar impacto social real.
4 – Inteligência Artificial traz oportunidades, mas também riscos
A inteligência artificial tem potencial para transformar radicalmente a forma como os governos tomam decisões, trazendo ganhos de eficiência por meio da automatização de tarefas, do atendimento ao cidadão em larga escala, da personalização de políticas sociais e do uso de análises preditivas. No entanto, os debates da formação ressaltaram que seu uso exige cautela.
Os riscos são reais, como desenvolver algoritmos com vieses presentes nos dados, operar de forma pouco transparente, além de excluir populações vulneráveis. Nesse contexto, surge uma questão central de responsabilização: quem deve responder por um erro cometido por um sistema automatizado? O gestor público, a empresa contratada ou o desenvolvedor?
O consenso alcançado é que a IA só pode ser útil ao setor público se for utilizada com transparência, auditabilidade e supervisão humana. Mais do que formar especialistas técnicos, é indispensável que gestores desenvolvam um repertório crítico para avaliar soluções e compreender os limites da tecnologia, evitando delegar decisões cegamente a algoritmos.
Essa discussão foi levada para o âmbito educacional, ao abordar o fenômeno da “terceirização cognitiva”, em que alunos deixam de pensar por si próprios e delegam à IA a tarefa de resolver problemas. Como referência, estudos do MIT investigam o uso do ChatGPT como uma ferramenta que auxilia o aluno a raciocinar, e não apenas a fornecer respostas prontas. No entanto, há também uma realidade em que crianças utilizam a ferramenta apenas para fazer o trabalho por elas.
“O problema não está na IA em si, mas em como ela é utilizada. Estamos cultivando criatividade, empatia e caráter, ou apenas eficiência?”, Professor Glenn Bezalel, especialista em filosofia e religião da City of London School.
5 – Infraestruturas públicas digitais precisam de governança sólida
A discussão sobre Infraestruturas Públicas Digitais (DPI) mostrou que, embora o conceito seja central para a modernização do Estado, não existe um modelo pronto a ser simplesmente copiado.
A experiência da Índia demonstrou a força da rapidez e da escala, com iniciativas como o Aadhaar, que criou uma identidade digital única para milhões de cidadãos, e as plataformas de pagamento massivas, que ampliaram a inclusão financeira. Já a Estônia seguiu um caminho distinto, construído ao longo de décadas, com foco em segurança, interoperabilidade e transparência, garantindo a confiança dos cidadãos no sistema.
Esses exemplos evidenciam que a eficácia das DPIs depende de elementos estruturantes: bases de dados confiáveis e auditáveis, governança sólida com regras claras para o uso das informações, interoperabilidade entre sistemas e capacidade de adaptação às necessidades locais.
O recado central, portanto, é que mais importante do que a tecnologia em si é a qualidade do desenho institucional e da governança que sustenta essas infraestruturas.
6 – Liderança é tão importante quanto tecnologia
Na formação, ficou evidente que a transformação digital é, antes de tudo, um processo humano, mais relacionado a pessoas do que a softwares. Isso exige lideranças corajosas, capazes de assumir riscos, sustentar decisões de longo prazo e conduzir mudanças mesmo diante de resistências institucionais.
Também demanda uma mudança cultural. Muitos governos ainda operam sob uma lógica que pune o erro, o que bloqueia a inovação e desencoraja a experimentação. Para avançar, é preciso valorizar o aprendizado que surge das falhas e criar ambientes onde testar novas soluções seja visto como parte do processo de melhoria.
Além disso, gestores precisam desenvolver competências críticas, entendendo minimamente como funcionam as tecnologias que desejam implementar, para que possam tomar decisões informadas e estratégicas. Sem líderes preparados e engajados, mesmo as ferramentas mais avançadas tendem a fracassar, pois tecnologia sem liderança não gera transformação sustentável.
7 – A agenda digital deve ser inclusiva e adaptada ao contexto local
Um dos maiores aprendizados foi reconhecer que não existem soluções universais. Experiências internacionais são inspiradoras, mas precisam ser traduzidas ao contexto brasileiro, marcado por desigualdades regionais e institucionais. Cada região tem seus próprios desafios e oportunidades, e a eficácia das políticas digitais depende de entender essas especificidades. Isso significa:
- Considerar as diferentes realidades urbanas e rurais;
- Desenhar políticas digitais que reduzam, e não ampliem, as assimetrias sociais;
- Garantir acesso à conectividade como direito fundamental;
- Evitar soluções “top down” (de cima para baixo), desconectadas dos atores de linha de frente e locais.
É importante reforçar que a transformação digital deve caminhar junto com processos de educação digital, capacitação de servidores e engajamento comunitário. Só assim será possível criar um Estado digital efetivamente inclusivo, que promova equidade e empodere cidadãos, fortalecendo a participação social e o desenvolvimento local.
Os aprendizados adquiridos na formação em Cambridge e Londres evidenciam que a transformação digital é um processo profundamente multidimensional. Não se trata apenas de adotar tecnologias ou sistemas digitais, mas de transformar estruturas, práticas e mentalidades.
Envolve, simultaneamente, o desenvolvimento de uma cultura organizacional aberta à inovação, a formação de lideranças capazes de tomar decisões estratégicas em ambientes complexos, a incorporação de princípios éticos em todas as iniciativas, a promoção da colaboração entre diferentes níveis de governo e setores da sociedade, e a adaptação constante às especificidades do contexto brasileiro, marcado por desigualdades regionais, diversidade institucional e desafios socioeconômicos variados.
E você, gestor? Já explorou como a transformação digital pode modernizar a administração pública e colocar o cidadão no centro das políticas? Acesse a série Futuro Digital e descubra conteúdos sobre boas práticas, ferramentas, curiosidades e experiências nacionais e internacionais para construir um governo mais eficiente, transparente e conectado.
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