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Introduzindo o Panorama das Cidades Brasileiras
Dados do Censo Demográfico realizado em 2022 contabilizaram que quase 90% da população brasileira reside em áreas urbanas. Em que pese que esse número em nada diminui a importância cultural, econômica, social e ambiental do meio rural, é fato que o que acontece nas cidades afeta, para melhor ou para pior, as condições de vida da maioria da população. Muito desse contingente populacional reside em um número relativamente pequeno de municípios: dos 5.570 existentes à época do último Censo, apenas 41 (0.7 %) têm mais de 500.000 habitantes e concentram cerca de 30% da população total do país. Entre 500.000 e 100.000 habitantes são 277 (5%) municípios com cerca de 30% dos brasileiros. Já no intervalo populacional menor que 100.000 habitantes e maior que 20.000, temos 1.380 municípios (25%) e mais quase 1/3 da população nacional. O restante da população está concentrada em municípios com menos de 20.000 habitantes.
Estes recortes não são aleatórios. A Constituição Federal, em seu artigo 182, determina que o Plano Diretor, a ser aprovado pela Câmara Municipal e obrigatório para cidades com mais de 20.000 habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Já o Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/01) que, entre outros, regulamenta os artigos da CF-88 relativos à Política Urbana e estabelece as diretrizes gerais sobre o tema, reitera e aprofunda essa obrigatoriedade, incluindo outros recortes territoriais (regiões metropolitanas, aglomerações urbanas, áreas de especial interesse turístico, de risco geológico e hidrogeológico, de influência de projetos de relevante impacto ambiental). Ou seja, virtualmente, a grande maioria dos municípios brasileiros teria a obrigação legal de elaborar Planos Diretores com uma periodicidade máxima definida em lei de 10 anos.
Já os municípios grandes (> 500.000 habitantes) e médios (entre 100.000 e 500.000), definições essas que não são universais mas que são consistentemente utilizadas em estudos do IPEA/IBGE sobre a rede urbana brasileira, devem atentar com maior profundidade para estudos setoriais (por exemplo, municípios com mais de 500.000 habitantes devem ter planos de transporte integrado) e relações regionais/metropolitanas que condicionam um planejamento integrado, conforme estabelecido no Estatuto da Metrópole (Lei Federal nº 13.089/15).
Esse preâmbulo traz apenas algumas das questões incontornáveis no âmbito do planejamento urbano com as quais o futuro gestor municipal irá se deparar. Evidentemente, será um trabalho multidisciplinar e em equipe. Contudo, como líder eleito destes processos, é fundamental que tenha a visão do conjunto, passando pelos elementos estruturantes e o entendimento de suas principais interfaces.
A série de textos sobre o Planejamento Urbano em Planos de Governo pretende se estruturar em três partes. Esta, primeira, visa destacar os principais temas e exigências do arcabouço legal no que tange o pensar nossas cidades, seu presente e seu futuro. O segundo texto trará alguns conceitos fundamentais em Planejamento Urbano visando a qualidade de vida da população e padrões mais sustentáveis e inclusivos de desenvolvimento. Já o terceiro reforçará que planejar é necessário, mas que há que se realizar esse planejamento focando, portanto, no “fazer acontecer” e alguns de seus instrumentos, assim como os necessários passos de acompanhamento e monitoramento das iniciativas planejadas.
Fundamentos para o Planejamento Urbano
Temas de Trabalho
Não são poucos os desafios das cidades brasileiras.
Sem a pretensão de elencar todos os temas, e lembrando que são interrelacionados, temos muito a equacionar em termos da provisão universal e qualificada do saneamento ambiental e meio ambiente (água, esgoto, drenagem, resíduos sólidos, proteção da biodiversidade e da integridade dos ecossistemas), mobilidade urbana (transporte coletivo, ciclovias, calçadas, infraestruturas viárias e de apoio a uma rede multimodal, mobilidade como serviço), uso do solo (mapeamento das áreas adequadas a diferentes usos [urbanos, rurais, conservação e preservação] e intensidades, limites e áreas de expansão, vetores de crescimento, sistemas de áreas verdes e de áreas públicas, áreas centrais, distritos industriais, territórios obsoletos/degradados), redes de serviços públicos e de equipamentos comunitários (transporte, iluminação, comunicação, segurança pública, educação, saúde, lazer, esporte, cuidados com a criança e o idoso), desenvolvimento econômico (infraestruturas e competitividade, arranjos logísticos, arcabouço legal tributário, incentivos possíveis, vocações e ativos locais, novas tecnologias, mudanças de hábitos e padrões de consumo), demandas sociais e de inclusão (moradia social e áreas de favela, participação social e comunitária, populações em condições de vulnerabilidade e/ou com necessidades especiais, segurança alimentar), políticas culturais (fomentos às artes e à cultura, proteção/valorização do patrimônio material e imaterial, identidade, diversidade e pertencimento, espaços artístico culturais).
A lista continua e parece inesgotável, mas há uma razão para isso: a cidade toca todos os aspectos da nossa vida. É, de fato, a “escala” (e o nível de governo) no qual efetivamente se desenrola o nosso cotidiano. Apesar de todas as facilidades da tecnologia, em algum momento tudo isso tem rebatimentos no território, e este território estará na coordenada geográfica de algum município que pode – e deve – ser planejado. Como dizia o arquiteto-urbanista e gestor público Jaime Lerner, “cidade não é problema, é solução!”. Ou seja, se é nela que se concentram os desafios, é também nela onde temos as maiores oportunidades para inovações e soluções.
Arcabouço Legal Básico
O Planejamento Urbano opera dentro do ordenamento constitucional e do arcabouço jurídico brasileiro, que apresenta uma rica, e por vezes intrincada, distribuição de competências em sua estrutura federativa composta pela união, estados e municípios. Não se pretende aqui elencar todos os instrumentos legais incidentes nos temas afetos ao planejamento, mas sim ressaltar aqueles de maior destaque. Cabe lembrar que os Planos de Governo municipais são documentos estratégicos que orientam a administração local, e que devem estar alinhados ao Plano Plurianual (PPA) e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), com a Câmara Municipal desempenhando um papel vital na aprovação e fiscalização, garantindo a transparência e a participação cidadã.
Estruturação do Território
O Estatuto da Cidade é a lei que estabelece as diretrizes gerais da política urbana. Entre suas mais importantes disposições está a definição, a partir dos planos diretores locais, das normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. Determina os princípios de uma gestão democrática, participativa e cooperativa entre governos e com os múltiplos atores da sociedade. Define uma série de instrumentos da política urbana (IPTU progressivo, operações urbanas consorciadas, transferência do direito de construir, entre muitos outros), os quais abordaremos com mais detalhe no texto do “fazer acontecer”. Coloca também o conteúdo mínimo em termos de parâmetros e ritos a serem abrangidos pelos Planos Diretores. Ressalta-se que é a partir dos Planos Diretores que decorrerão outras leis fundamentais para o planejamento e gestão do território municipal:
- Leis de perímetro urbano (e de eventuais áreas de expansão urbana e distritos especiais);
- Leis de zoneamento e de parcelamento, que contemplam os parâmetros de fracionamento, de uso e ocupação do solo urbano (o que pode ser feito onde e com que intensidade);
- Diretrizes de sistema viário e de mobilidade;
- Percentuais de doação de áreas verdes e/ou para equipamentos públicos e comunitários a partir de empreendimentos imobiliários;
- Mapeamento de áreas de risco e susceptibilidade à desastres naturais;
- Zonas de especial interesse social, fundamentais à regularização fundiária;
- Códigos de posturas e de obras, que influenciam tanto a qualidade das interfaces entre os espaços públicos e privados (como fachadas ativas, por exemplo) quanto à salubridade, segurança e conforto ambiental das edificações (áreas mínimas, aberturas, circulações horizontais e verticais).
Ou seja, o Plano Diretor é a base para a formação do “desenho da cidade”, de sua estrutura de desenvolvimento a partir de uma construção conjunta com a sociedade.
Cabe destacar também o Estatuto da Metrópole (Lei Federal nº 13.089/2015), que regula a gestão integrada das funções públicas de interesse comum em regiões metropolitanas e aglomerações urbanas. Esse Estatuto busca fortalecer a cooperação entre municípios, uma vez que as dinâmicas regionais transbordam a fronteiras locais, exigindo políticas integradas para o seu bom equacionamento (gestão do transporte, do lixo, de recursos hídricos, por exemplo).
Hierarquia Viária e Mobilidade Urbana
A hierarquia viária, ou seja, a classificação das vias em função de seu porte, capacidade e tipo de tráfego, assim como as prioridades definidas para a Mobilidade Urbana são elementos poderosos de organização territorial, e devem guardar estreita relação com o planejamento do uso e da ocupação do solo. Cuidados nesse sentido evitam descontinuidades excessivas da malha urbana, que impactam de forma negativa a construção de itinerários do transporte público e da coleta de lixo, por exemplo. As prioridades para a Mobilidade Urbana – a valorização do transporte público, dos pedestres, dos ciclistas, ou do transporte individual motorizado, por exemplo – também impactam significativamente a forma urbana, a qualidade de vida e o gasto energético das cidades. Compõe essencialmente o arcabouço legal deste tema a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei Federal 12.587/12), a NBR 9050/1994, e o Código de Trânsito Brasileiro (Lei Federal nº 9.503/97).
Meio Ambiente e Áreas de Risco
O Brasil tem uma legislação longeva e respeitada internacionalmente em seus conceitos quanto à proteção ambiental e ao desenvolvimento sustentável.
Balizam o planejamento e a gestão ambiental nos municípios brasileiros o Código Florestal, criado em 1965 e atualizado em maio de 2012 (Lei Federal 12.651), o qual define as áreas de preservação e seus limites; e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Lei Federal n. 9.985/00), o qual elenca e define uma série de instrumentos que servem ao planejamento estratégico e a gestão do patrimônio ambiental, além das normas estaduais e municipais específicas.
O Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, criado pela Lei Federal 9.433/97, traz uma série de instrumentos como os Comitês de Bacia Hidrográfica e a outorga onerosa a fim de viabilizar esses processos. Os caminhos das águas não seguem limites político-administrativos, portanto as suas soluções também precisam trilhar outras fronteiras. Cabe aqui uma palavra sobre o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), uma ferramenta que encoraja a conservação dos ecossistemas a partir de incentivos econômicos aos proprietários de imóveis urbanos ou rurais que possuam áreas naturais capazes de fornecer serviços ambientais.
Somam-se aqui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei Federal 12.305/10) e o Novo Marco do Saneamento (Lei Federal nº 14.026/2020), os quais visam universalizar o acesso a serviços de saneamento, promover a melhoria das infraestruturas e reduzir as desigualdades regionais. As deficiências na provisão desse serviço causam grandes prejuízos à sociedade e ao ambiente, mas seu melhor equacionamento passa também por uma forte necessidade de boas estratégias de comunicação e educação, pois enquanto as pessoas acharem normal jogar lixo na rua ou um sofá velho no rio, teremos um longo caminho a percorrer.
Lembrando que há outras leis que compõe o arcabouço pertinente, destacamos ainda a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei Federal nº 12.608/12) que tem em seu foco a identificação e a gestão de áreas de risco, a prevenção e mitigação de desastres naturais, e a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres, conteúdos inescapáveis ao planejamento e gestão das cidades na atualidade.
Habitação Social e Regularização Fundiária
O tema da moradia digna é um dos principais desafios das cidades, especialmente as de maior porte. Algumas ferramentas jurídicas/de planejamento que são úteis a esses processos, tais como os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade podem ser de grande valia. Há ainda disposições específicas na Lei Federal nº 13.465/17, que versa sobre a Regularização Fundiária em Áreas Urbanas (Reurb) e rurais, a apresenta também alguns instrumentos arrojados para contribuir com essas políticas, e incentivos à produção de moradias, como expressos no programa Programa Minha Casa, Minha Vida (Lei Federal nº 12.424/11).
Conclusão
O Planejamento Urbano é um tema de grande amplitude e riqueza, e um terreno potencialmente fértil para que os gestores municipais possam deixar sua marca de inovação na melhoria da qualidade de vida da população a partir dos compromissos de seus Planos de Governo. As prioridades e os melhores caminhos para atingi-las são uma construção específica e partilhada a partir das condicionantes da natureza, da história, da sociedade de cada lugar, balizadas pelo conjunto de normativas que orientam a atuação dos agentes públicos e privados na federação brasileira.
*Esse conteúdo pode não refletir a opinião da Comunitas e foi produzido exclusivamente pelo especialista da Nossa Rede Juntos.
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Muito bom esse material. Ajuda e muito…hehe. Obrigado