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O cidadão no centro: a nova fronteira da transformação digital

Publicado em: 15.09.25
Escrito por: Regina Esteves Tempo de leitura: 9 min Temas: Atendimento ao Cidadão
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Em um cenário político frequentemente dominado por urgências e conflitos, é um sinal de maturidade institucional ver avançar uma discussão tão estruturante quanto a da reforma administrativa. O esforço coordenado pelo deputado Pedro Paulo à frente de um Grupo de Trabalho instituído pelo presidente da Câmara de Deputados tem se destacado por uma abordagem técnica, distanciando-se de tentativas passadas que foram rapidamente rotuladas como meramente punitivas ou fiscalistas. Embora o texto final da proposta ainda não seja público, as diretrizes e os conceitos divulgados até agora inspiram um otimismo cauteloso, sugerindo um foco em eficácia, modernização e, acima de tudo, na transformação digital como o motor para um Estado mais inteligente.

Para entender a dimensão dessa oportunidade, é preciso primeiro reconhecer uma revolução silenciosa que já aconteceu. Nos últimos anos, o Brasil tornou-se, sem alarde, uma potência global em governo digital. Enquanto muitos países desenvolvidos ainda lutavam para unificar suas plataformas, o Brasil implementou e escalou o GOV.BR, que hoje ultrapassa 150 milhões de usuários – um ecossistema digital que alcança a vasta maioria da população. O impacto foi concreto e transformador. A Prova de Vida para aposentados, antes um ritual anual de deslocamento e filas, migrou para o reconhecimento facial no celular. A emissão do Certificado Nacional de Vacinação durante a pandemia foi um esteio de saúde pública. Abrir uma empresa como Microempreendedor Individual (MEI) tornou-se um processo de minutos. O Pix exemplifica nossa capacidade de adoção massiva de tecnologia quando bem executada – são mais de 160 milhões de usuários e trilhões em transações. Esse sucesso, reconhecido em índices como o E-Government Development Index da ONU e o GovTech Maturity Index do Banco Mundial, nos deu uma infraestrutura digital robusta e uma base de usuários engajada. Chegamos ao topo da montanha do governo digital federal.

O problema é que, do outro lado desta montanha, há um vale de fragmentação – ainda que com algumas pontes já em construção. O diagnóstico do nosso próximo desafio é o da assimetria digital no federalismo, mas seria injusto não reconhecer os avanços importantes que já estão em curso. O SUS Digital, por exemplo, representa um esforço hercúleo de integração: o Meu SUS Digital já permite que cidadãos acessem seu histórico de vacinação, exames e consultas de diferentes pontos da rede. O Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC) está presente em 87% das unidades básicas de saúde. A Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) já conecta milhares de estabelecimentos. São avanços reais e significativos que mostram que a interoperabilidade não é uma utopia.

Ainda assim, a experiência do cidadão com o Estado permanece uma colcha de retalhos costurada entre a União, 27 estados e mais de 5.500 municípios. Mesmo com os avanços do SUS Digital, um paciente que se muda de São Paulo para o Acre ainda pode encontrar dificuldades para que seu histórico médico completo seja acessível. Na educação, apesar do Sistema Nacional de Informações da Educação Profissional e Tecnológica (SISTEC) e do Censo Escolar, ainda não temos uma visão integrada do percurso educacional de cada estudante, do berço a formação continuada pós-universidade. No registro civil, embora o SIRC (Sistema Nacional de Informações de Registro Civil) tenha avançado e o sub-registro de nascimento tenha sido radicalmente diminuído, ainda convivemos com cartórios usando sistemas próprios que dificultam a interoperabilidade plena.

Essa desconexão gera custos concretos. Para o cidadão, significa perder tempo em burocracias duplicadas e enfrentar a frustração de ter que lidar com dezenas de sistemas distintos, cada um com regras e senhas próprias. Para o gestor público, representa a dificuldade de articular políticas verdadeiramente integradas. E para a sociedade, significa um Estado que enxerga seus cidadãos de forma fragmentada, oferecendo respostas setoriais para problemas que são complexos e multidimensionais.

Essa visão fragmentada se manifesta de forma crítica no atendimento às populações mais vulneráveis. Tomemos como exemplo um jovem cujo núcleo familiar é assistido por diferentes esferas de governo: ele pode estar sob atendimento socioeducativo (estadual), enquanto sua família recebe um benefício social (federal) via CadÚnico e seus irmãos frequentam uma escola (municipal). Esses serviços orbitam a mesma família, mas seus dados raramente dialogam de forma automática e integral. O resultado é uma atuação reativa e setorial. Numa situação de crise, como uma ocorrência de violência doméstica, o policial estadual que atende o chamado consegue ter, em tempo real, uma visão 360 graus dos vínculos e vulnerabilidades daquela família com o Estado? Embora existam embriões de integração, como o cruzamento de dados do Bolsa Família com a frequência escolar, ainda há um enorme espaço para aprofundar essas conexões. O desafio é expandi-las para além dos programas sociais, de modo a construir uma visão integral do cidadão que permita intervenções públicas mais rápidas, preditivas e, acima de tudo, humanas.

É para resolver essa questão fundamental que as ideias da reforma se tornam tão promissoras. A solução é aprofundar e acelerar a interoperabilidade federativa, e as pistas indicam que a proposta buscará criar os mecanismos para torná-la uma realidade abrangente. Não se trata de reinventar a roda ou ignorar o que já foi feito. O Brasil já possui o veículo institucional para isso, a Rede Nacional de Governo Digital (Rede GOV.BR), que hoje atua mais como um fórum de adesão voluntária e já conta com importantes iniciativas como o Conecta GOV.BR para compartilhamento de dados entre órgãos federais. A reforma pode e deve fortalecê-la, transformando-a em uma espinha dorsal de governança que abranja todos os níveis federativos.

O caminho para isso já foi trilhado por outras federações, e o Brasil pode aprender tanto com sucessos externos quanto com seus próprios avanços setoriais. A Alemanha, por exemplo, enfrentou um desafio semelhante de fragmentação. A solução foi criar uma estrutura de governança robusta: um conselho político-estratégico, o IT-Planungsrat, onde governo federal e estados definem conjuntamente os padrões técnicos e os projetos digitais prioritários que serão obrigatórios para todos. Para garantir que as decisões saiam do papel, eles contam com uma agência executora, a FITKO

Esse modelo não suprime a autonomia local; ele cria as “rodovias” digitais (padrões de dados, protocolos de segurança, catálogos de serviços) sobre as quais cada estado e município pode trafegar com segurança e eficiência. As propostas ventiladas por Pedro Paulo, como a criação de um “Ato Digital Obrigatório” que tornaria todo processo público rastreável por padrão, aponta para a criação dessas regras do jogo. O “Ato Digital”, em particular, pode ser o instrumento legal que muda a lógica padrão: todo novo serviço já nasceria com a obrigação de ser digital e integrável, expandindo o que a Lei do Governo Digital (14.129/2021) já começou a estabelecer.

O sucesso dessa empreitada, contudo, depende do alinhamento e de incentivos corretos. É aqui que os outros eixos da reforma se conectam de forma decisiva. A exigência de que todo governo eleito apresente um plano estratégico com metas claras fornece o “porquê” da ação pública. A introdução de um sistema de gestão por resultados, com a possibilidade de bônus para equipes que cumprem metas coletivas, cria o estímulo para a colaboração – algo que poderia ser expandido para premiar especificamente iniciativas de integração federativa.

Imagine o poder de um incentivo federal para que um município adote plataformas e soluções comuns, em vez de gastar seu orçamento limitado desenvolvendo uma solução própria e isolada. Ou melhor ainda: imagine fundos específicos de modernização digital condicionados à adoção de padrões nacionais de interoperabilidade, similar ao que o BNDES já faz com o Programa Federativo para Governo e Infraestrutura Digital (Prodigital), mas com foco específico na integração federativa. Iniciativas dessa natureza poderiam ser acompanhadas de estudos para identificar redundâncias entre sistemas estaduais e municipais que poderiam ser eliminadas através de soluções compartilhadas.

Há também a questão crítica da capacitação. O Brasil tem investido na formação de servidores através da Escola Virtual de Governo da ENAP e iniciativas como o Brasil Mais Digital, implementado em parceria com o BID, mas a escala ainda é insuficiente para os mais de 11 milhões de servidores públicos no país. A reforma poderia estabelecer metas ambiciosas de alfabetização digital e criar trilhas de capacitação específicas para a transformação digital do Estado, talvez até com parcerias com o setor privado e universidades, como já acontece em programas pontuais.

A discussão sobre a reforma administrativa que se avizinha nos oferece a chance de superar um debate historicamente limitado. A questão não é simplesmente ter um Estado maior ou menor, mas sim um Estado mais inteligente, coerente e que aproveite os avanços já conquistados para dar o próximo salto. A face mais visível dessa inteligência é um governo que funciona de forma verdadeiramente integrada, onde a complexidade de sua estrutura federativa é um problema de engenharia interna, e não um fardo para o cidadão.

Os sinais emitidos pelo grupo de trabalho são positivos porque parecem compreender essa premissa e reconhecer que não partimos do zero: temos ilhas de excelência que precisam se tornar um arquipélago conectado e, eventualmente, um continente digital unificado. A expectativa é que a proposta final tenha a ambição e a densidade necessárias para transformar essa visão na próxima grande revolução do Estado brasileiro, construindo sobre as fundações já estabelecidas e acelerando o ritmo da transformação que já está em curso.

*Artigo originalmente publicado na Revista Exame.



*Esse conteúdo pode não refletir a opinião da Comunitas e foi produzido exclusivamente pelo especialista da Nossa Rede Juntos.

Artigo escrito por: Regina Esteves
Diretora Presidente Comunitas
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