O livro “Locação Social em Banho-Maria” é sobre o que é, o que não é e o que pode ser a locação social no Brasil. Contém exemplos de programas europeus, norte-americanos, latino-americanos e experiências brasileiras municipais com avaliações e percepções de atores-chave e sem-chave, além de propostas próprias. O livro é pertinente para administradores públicos e também privados, representantes de organizações da sociedade civil e de movimentos sociais e para pesquisadores. É relevante sobretudo neste momento em que o novo Plano Nacional de Habitação 2024-2040 se encontra em elaboração.
Locação Social: Por Que Não!?
Você acha que a universalização da casa própria é um sonho possível? Talvez seja, mas estamos longe de alcançar essa meta globalmente. Em 2023, ultrapassada a pandemia da Covid 19, mais de dois terços dos europeus (69%) eram proprietários dos domicílios onde viviam, enquanto 31% viviam em residências alugadas. No mesmo ano, 64% dos americanos eram proprietários; mas mais de 21 de milhões estavam sobrecarregados com custos de aluguel. Pagar aluguel acima de 30% da renda mensal é considerado, no mundo todo, ônus excessivo.
No início de 2022, sete em cada dez brasileiros já haviam conseguido comprar sua casa própria, de acordo com o Censo Quinto Andar de Moradia, feito em parceria com o Instituto Datafolha. Segundo o levantamento, 62% dos brasileiros viviam em imóveis quitados, 8% em financiados, 27% pagavam aluguel e 3% moravam em imóveis cedidos ou emprestados. Ocorre que imóvel quitado não significa necessariamente registrado. Estima-se que cerca de 40 milhões não tem escritura, isto é, 60% do total! E, sem o documento, fica difícil transferir o imóvel por inventários e testamentos, vender ou alugar bem.
Antes da pandemia, em 2019, o total do déficit habitacional oficial era de 5.876.699 domicílios, sendo que 52% destes domicílios pagavam ônus excessivo com aluguel urbano. Ressalte-se que esses números da Fundação João Pinheiro não incluíam os do mercado informal porque a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD/IBGE não os contabiliza. Mas, estimava-se que o comprometimento da renda com aluguel nas favelas estivesse em torno de mais de 35%, com o agravante de que grande parte desses domicílios encontram-se em territórios do ‘urbanismo miliciano‘. De acordo com o Censo de 2022, em termos absolutos, em comparação com 2019, houve um aumento de cerca de 4,2% do déficit habitacional do país. Dessa vez, foram contabilizadas 16,4 milhões de pessoas vivendo em 6,5 milhões de domicílios em favelas. Isto é, 8% da população.
Ultrapassada a pandemia da Covid 19, do total dos brasileiros residentes em domicílios alugados, segundo uma análise da Síntese dos Indicadores Sociais – SIS de 2023, 23,3% sofriam com o ônus excessivo sobre a renda mensal, sendo que isso é mais frequente entre a população mais pobre dos estados com rendimento mais alto. A predominância do déficit habitacional brasileiro concentra-se nas famílias com renda até 2 salários mínimos e o ônus excessivo com aluguel urbano nas famílias com renda até 3 salários mínimos.
Porém, no Brasil, ainda não há uma Política Nacional de Locação Social como há na Europa, desde o início do século XX, e nos EUA, desde meados do século passado; há apenas algumas experiências de programas e leis aguardando regulação em algumas cidades: Santos (1996), São Paulo (2002), Campo Grande (2005), Curitiba (2008), Salvador (2011), Fortaleza, Belo Horizonte (2015), o Distrito Federal (2017), Porto Alegre (2018), São Luís (2019), o Estado de Goiás (2012), Distrito Federal (2017), Porto Alegre (2018) São Luís (2019) e Rio de Janeiro (2023). Trata-se, porém, de uma bela história de lutas e conquistas de movimentos sociais de cidadania, caracterizando um planejamento do tipo ‘de baixo para cima’.
Antes das eleições presidenciais e de governadores de 2022, o tema da Locação Social esteve bastante presente nos debates dos candidatos, em manifestos de organizações da sociedade civil e em entrevistas da mídia com acadêmicos e representantes de entidades do mercado imobiliário e da construção civil e com acadêmicos. Após a reconstituição do MCidades e a volta da Secretaria Nacional de Habitação para seu âmbito, no início de 2023, esperava-se que seria anunciada uma Política Nacional de Locação Social. Ao invés disso, na política de subsídios públicos à aquisição da propriedade privada disposta na LEI 14.620/2023 do novo programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), a locação social foi introduzida apenas como uma possibilidade, ao lado da ‘urbanização de lotes’ e de ‘melhorias habitacionais’. Isto é, como uma alternativa a ser regulamentada, futuramente.
Por quê a opção preferencial do governo Lula 3 foi pelo MCMV novamente, incluindo agora a modalidade MCMV-Rural? Uma explicação é porque, do ponto de vista conjuntural, no quadro pós-pandemia recessivo e inflacionário do final de 2022 e do início de 2023, talvez os riscos fossem bem menores. E, claro, os dividendos políticos de criação de empregos e inauguração de obras continuam sendo avaliados como sendo bem maiores. De fato, o programa MCMV, financiado majoritariamente com recursos do FGTS, vem turbinando o setor imobiliário e a criação de empregos e o setor imobiliário vem liderando a alta na bolsa de valores.
Contudo, recentemente, em abril de 2025, durante o 100º Encontro Nacional da Indústria de Construção, o Presidente Lula reconheceu, não sem melancolia, que a casa-própria permanece sendo um sonho.
Desde que nós começamos o Minha Casa, Minha Vida, nós já fizemos 8 milhões de casas, e ainda temos um déficit de 7 milhões. Isso significa que nós estamos enxugando gelo. – Luiz Inácio Lula da Silva
Cabe aos economistas um estudo comparativo robusto sobre as duas opções – Casa Própria ou Locação Social -, considerando as vantagens e desvantagens dos subsídios tributários, financeiros e creditícios. Cabe aos urbanistas e arquitetos analisar nos territórios, nos bairros e nas cidades os impactos dos instrumentos de política urbana e de regulação edilícia aplicados para incentivar a habitação de interesse social por meio do MCMV ou da locação social, seja pública ou público-privada ou público-popular. E cabe aos cientistas sociais, advogados e ativistas avaliarem os impactos na sociedade das diferentes opções. Houve mudança social, progresso? Eis a questão para a qual os cidadãos-eleitores esperam resposta.
Espero que o livro “Locação Social em Banho-Maria” possa contribuir para o debate.
Resumo dos Capítulos
Locação Social por Meio Mundo
No capítulo 1, a atual crise global da habitação é abordada e programas de locação social europeus (Alemanha, Inglaterra, França, Portugal, Espanha, Áustria, Holanda e Bélgica) norte americanos (EUA, Canadá) e latino-americanos (México, Colômbia, Peru, Bolívia, Argentina, Chile, Uruguai) são comparados a partir de dados secundários coletados na Revisão Bibliográfica e em um Clipping de Mídia digital. Foram incluídos também dados primários de programas de locação social em projetos de renovação de conjuntos de habitação social públicos visitados em Toronto, no Canadá, e em Atlanta, nos EUA.
A Escalada dos Aluguéis e os Impactos Sociais no Brasil
No capítulo 2 é mostrado como a pandemia agravou o quadro crônico de ônus excessivo com aluguel urbano e de despejos, ocupações, remoções forçadas, reintegrações de posse e aumento da população em situação de rua, e o debate entre os prós e os contras às propostas de controle dos preços do aluguel.
Locação Social à Brasileira
No capítulo 3 são apresentadas experiências de programas nas cidades de Santos, São Paulo, Belo Horizonte, Fortaleza, Salvador, São Luís, Campo Grande, Goiânia, Curitiba e Porto Alegre. Uma história de lutas e conquistas de movimentos sociais de cidadania desde os anos 80 do século passado, culminando, por um lado, no Programa Nacional para a População de Rua – PNPR (2004), na Política Nacional para a População em Situação de Rua – PNPSR (2009) e, mais recentemente, no Plano Ruas Visíveis (2023), que prevê a priorização do acesso da população em situação de rua ao Programa MCMV– Entidades e ao Programa de Democratização de Imóveis da União, o “Imóvel da Gente” (2024). Por outro lado, a locação social foi incluída na Política Nacional de Habitação, desde 2004.
Locação Social em Banho-Maria
No capítulo 4 é analisado como a Locação Social se apresenta na esfera pública federal brasileira. Ela foi incluída na Política Nacional de Habitação, em 2004, mas só voltou à pauta do governo, em 2009, após um seminário internacional organizado pelo MCidades, quando o Conselho Nacional das Cidades recomendou, na Resolução 75, um ‘Serviço de Moradia Social’. No Plano Nacional de Habitação – PLANHAB 2010, a Locação Social passou a constar da Linha Programática para Produção e Aquisição da Habitação como estratégia de Promoção Pública de Unidades Habitacionais em Centros Históricos e Áreas Urbanas Consolidadas, com previsão de consolidação entre 2012-2015. Os prazos de concessão do benefício e a gestão das unidades ficaram para serem definidos nos programas locais de atendimento. Desde então e até 2021, a locação social como política nacional de habitação permaneceu em banho-Maria. A Nota Técnica do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID de 2021– Habitação de Interesse Social no Brasil: propostas sobre locação social, considera fortemente a participação do setor privado em Parcerias Público Privadas – PPPs e não aconselha que a União se envolva na administração de um futuro Programa Nacional de Locação Social. Conclui-se que, desse modo, a proposta deixa a desejar em termos de soluções para os diversos impasses da gestão não integrada entre as diferentes instâncias político-administrativas. Entre estes, destaca-se o gerenciamento da inadimplência, bastante alta também nos programas de casa-própria.
Locação Social: o que não é e o que pode ser
No capítulo 5, a preocupação foi desfazer as confusões entre Locação Social e programas emergenciais denominados Auxílio Aluguel, Bolsa Aluguel ou Aluguel Social e ‘Vouchers’. A questão do tempo de permanência em abrigos, moradias assistidas, imóveis alugados públicos ou privados, formais ou informais e mesmo em imóveis próprios é bastante polêmica, haja vista a taxa de inadimplência e a impermanência nas unidades do MCMV ou a problemática aplicação do IPTU Progressivo em imóveis vagos. O Censo 2022 apontou que há 11,4 milhões de domicílios vagos no Brasil, mas isso não significa que todos estão em condições de moradia e que poderiam servir sua função social a curto prazo. Neste capítulo também se encontram propostas alternativas tanto de movimentos sociais, de acadêmicos e de organizações sem fins lucrativos quanto de entidades profissionais, sindicatos patronais e bancos.
Percepção dos Atores-Chave e Sem-Chave no Rio de Janeiro
No capítulo 6 é analisado como a Locação Social, incluída no programa ‘Reviver Centro’ e no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável da Cidade do Rio de Janeiro, foi percebida pelos participantes das audiências públicas bem como pelos jornalistas e seus entrevistados. O processo, desde o planejamento em 2021, passando pelas audiências até a votação no final de 2023, evidenciou a resistência à mudança social e a acomodação em prol do status quo – conluios por novas capturas regulatórias; negociações e deferimentos a concessões de benefícios tributários e vantagens locacionais ao setor imobiliário – bem como protestos, articulações e acordos sobre emendas em prol de alguma mudança social, de direitos adquiridos e de novas oportunidades. A Locação Social, embora tenha permanecido no novo programa Reviver Centro; no Plano Diretor, foi deslocada para as favelas e ainda precisa ser regulamentada.
Mudança Social na Teoria e na Prática
No capítulo 7, diversos conceitos são apresentados como parte de um painel de referências teóricas e metodológicas que serviram para análise dos diferentes programas de locação social, suas formas de financiamento, legislação, vantagens e desvantagens, e resultados. As principais referências teóricas foram a Teoria da Regulação Econômica, que justifica a atuação do governo na correção de imperfeições do mercado e a Teoria do Planejamento Urbano Estratégico, considerada atualmente como uma forma de governança.
Conclusão
Faz-se necessário questionar o paradigma da casa-própria, considerando que a política habitacional de casa-própria vem provocando o espraiamento das cidades e encarecendo os serviços públicos no entorno dos empreendimentos, bem como inflacionando os aluguéis de mercado nessas áreas, a despeito da orientação do governo Lula 3 de incentivar a produção nos centros históricos, e considerando a persistência do déficit habitacional e da inadimplência dos financiamentos.
Faz-se necessária uma política nacional de locação social que represente uma alternativa de fato ao paradigma da casa-própria e que não se confunda com a fragilidade institucional do ‘Benefício do Aluguel Social’, o qual mesmo sendo emergencial e temporário para removidos por motivo de obras públicas ou por motivo de riscos e acidentes ambientais, tem durado em média entre 5 e 10 anos de ilusões e manipulações eleitoreiras.
O livro apresenta algumas respostas para muitas perguntas e as seguintes propostas: 1. criação de uma Agência Nacional Reguladora de Habitação – ANH, 2. Zoneamento Inclusivo não restrito aos centros históricos, e 3. Comitê Gestor Compartilhado entre as instâncias políticas-administrativas e Cooperativas Locais de ‘Corretores Sociais’.
*Esse conteúdo pode não refletir a opinião da Comunitas e foi produzido exclusivamente pelo especialista da Nossa Rede Juntos.
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