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Do dado à confiança: colocar o cidadão no centro

Publicado em: 26.08.25 Atualizado em: 15.09.25
Escrito por: Regina Esteves Tempo de leitura: 5 min Temas: Ciência e Tecnologia, Transparência e Combate à Corrupção
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No meu artigo anterior, sobre liderança e governança no Estado digital, descrevi como a ida a Londres e Cambridge nos colocou diante de um consenso improvável: tecnologia é meio, não fim. Mas havia outra camada que surgia nos diálogos de corredor e nas pausas para café. Mesmo com boa liderança e instituições capazes, a transformação digital só se sustenta se for sentida, percebida e valorizada por quem está do outro lado da tela: o cidadão.

Foi nesse ponto que a conversa com colegas brasileiros e estrangeiros mudou de tom. Saímos do vocabulário de organogramas e passamos a falar de marcas que qualquer um reconhece e pronuncia com naturalidade: Gov.br, Pix, Diia. Não como siglas frias em relatórios, mas como verbos de uso cotidiano. “Faz no Gov.br.” “Manda por Pix.” “Resolve pelo Diia.” Essa familiaridade é o Santo Graal de qualquer agenda digital: quando a tecnologia pública deixa de ser promessa distante e vira hábito confiável, incorporado à rotina.

O Gov.br concentrou mais de 4.200 serviços num único login e se tornou a maior página de autenticação governamental do mundo. O Pix conquistou 80% de aprovação não por ostentar inovação tecnológica, mas por resolver, em segundos e sem custo, algo que antes era caro e demorado. Já o Diia, na Ucrânia, não é apenas um aplicativo: é a porta de entrada para o Estado. Ali se acessa a carteira de identidade digital, documentos oficiais, benefícios sociais, licenças e até operações bancárias. Durante a guerra, foi também um canal de comunicação direta com a população, enviando alertas e orientações. Nas ruas de Kiev ou Lviv, não se fala “vou ao cartório” – se fala “vou pelo Diia”.

Mas a confiança também nasce fora da tela. Na Cidade do Cabo, durante a crise hídrica, mapas de consumo de água eram divulgados com clareza, mostrando bairros que mais economizaram. As metas eram públicas, o risco do “Dia Zero” era explicado em termos simples, e o engajamento diário transformou a ameaça em ação coletiva. O dado sozinho não se mobiliza; é a narrativa que o torna vivo que move as pessoas. No Reino Unido, o Government Communication Service mostrou que narrativas autênticas, construídas com dados e histórias reais, podem aumentar a confiança pública em 7 a 8 pontos percentuais – prova de que comunicar bem é política pública.

Aqui no Brasil, estamos acostumados a falar em participação – conselhos, audiências públicas, consultas. Há experiências lindas e transformadoras. Mas no mundo digital, a participação precisa significar também projetar serviços a partir da experiência do usuário. Isso implica construir perfis, observar jornadas de uso, testar com grupos focais, e ajustar o que for necessário até que faça sentido para quem precisa dele. É a mesma lógica da boa política pública, só que aplicada ao clique e ao toque: não basta disponibilizar, é preciso garantir que funcione para diferentes perfis e contextos.

Nada disso é simples. O uso estratégico de dados enfrenta tensões: quem controla, quem acessa, quem protege. A eficiência digital pode excluir quem não tem acesso à internet ou habilidades digitais. A chegada da inteligência artificial abre um dilema novo: como usá-la para apoiar decisões sem transferir, de forma invisível, o julgamento crítico para algoritmos opacos? Tecnologia pode acelerar escolhas, mas não substitui o discernimento que dá legitimidade a elas.

A exclusão digital não é apenas falta de conexão; é custo, infraestrutura precária, baixa alfabetização digital. Incluir significa oferecer alternativas offline: balcões de atendimento, integração com redes existentes e canais de voz. Significa projetar o serviço como um todo, e não apenas o aplicativo. E significa comunicar melhor: explicar impacto, mostrar resultados, responder ao retorno do cidadão. É aqui que a confiança se solidifica ou se perde.

Ao deixar Londres, a sensação era clara: esta segunda lição da viagem é tão urgente quanto a primeira. Liderança e governança sustentam a agenda, mas é a experiência do cidadão que lhe dá legitimidade. Confiança não se decreta, se constrói – serviço a serviço, clique a clique. No próximo artigo, falo sobre como liderar inovação com responsabilidade, porque entre a promessa tecnológica e a confiança do cidadão há um território decisivo: o das escolhas diárias sobre o que vale a pena fazer, quando e como. É ali que a liderança pública mostra se a agenda digital é, de fato, para todos.

*Artigo originalmente publicado na Revista Exame.



*Esse conteúdo pode não refletir a opinião da Comunitas e foi produzido exclusivamente pelo especialista da Nossa Rede Juntos.

Artigo escrito por: Regina Esteves
Diretora Presidente Comunitas
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