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A segurança pública é um pilar fundamental para o desenvolvimento pleno e democrático do Brasil, uma nação assolada por índices de violência que restringem não apenas a liberdade e segurança de seus cidadãos, mas também o seu potencial econômico e social. Este desafio vai além da mera preservação da ordem, afetando profundamente a qualidade de vida dos brasileiros, restringindo oportunidades educacionais e prejudicando o tecido social em comunidades por todo o país, perpetuando ciclos de pobreza e exclusão social. A violência impõe barreiras ao progresso, desviando recursos essenciais de áreas vitais como educação e saúde, e limitando os sonhos e aspirações de jovens, mulheres, e famílias inteiras, que veem seu futuro comprometido pelo medo constante. E, não só, a violência retroalimenta o medo e a insegurança, que exterminam a perspectiva de futuro.
É imprescindível, portanto, abordar a segurança pública não apenas como uma questão de ordem e disciplina, mas como um desafio complexo que demanda soluções inovadoras, respeitosas aos direitos humanos e alinhadas aos princípios democráticos. A construção de instituições ágeis e eficazes, capazes de responder ao problema da violência sem comprometer o estado de direito, é uma urgência nacional.
A sociedade brasileira deve se mobilizar para encontrar respostas democráticas para a segurança pública, antes que alternativas que restrinjam direitos civis ganhem espaço como solução para um problema que afeta a todos. Diante desses desafios, a busca por soluções criativas inclui o olhar para novas formas de colaboração interfederativa e intersetorial. Afinal, o Brasil, como um país de dimensões continentais e organizado em uma república federativa, precisa coordenar esforços entre diferentes níveis e esferas de Poder e Governo e isso passa por novos e mais robustos mecanismos de governança democrática das políticas públicas.
Isso porque esse tema se posiciona no epicentro das preocupações nacionais, refletindo uma complexidade que vai além dos números alarmantes de violência – e sim um problema de fundamentos profundos que afetam sonhos de brasileiros cujo desenvolvimento de habilidades e aspirações são limitados pelo medo. Este artigo inaugura uma série dedicada a desvendar as camadas multifacetadas da segurança no Brasil, propondo um olhar crítico sobre as estratégias atuais e delineando reformas necessárias para uma transformação efetiva.
Através desta jornada, exploraremos a reforma das polícias e do sistema de justiça criminal, o papel da tecnologia e da inteligência na segurança e a importância do planejamento estratégico baseado em dados e evidências científicas. Cada tema, crucial para entender e combater a violência, será detalhado nos artigos subsequentes, buscando não apenas diagnosticar os problemas, mas também apontar para soluções pragmáticas, inspiradas em sucessos tanto nacionais quanto internacionais.
Iniciativas emergentes de cooperação entre diferentes esferas governamentais sinalizam um caminho promissor para a construção de uma abordagem mais unificada e estratégica em segurança pública. Em um desdobramento recente, testemunhamos a emergência de diversas iniciativas de cooperação interfederativa em segurança pública, incluindo consórcios regionais (Amazônia, Consud) e ações interagências como as FICCO (Força Integrada de Combate ao Crime Organizado) e o Programa Celular Seguro, em uma estratégia que reflete uma abordagem proativa e colaborativa entre diferentes esferas de governo e sociedade. Este esforço conjunto acena para um futuro onde a colaboração transpassa fronteiras estaduais, reimaginando a gestão e, sobretudo, a governança da segurança em nível nacional.
Treinamento especializado e meritocracia
A melhoria dos indicadores de segurança pública certamente depende do enfrentamento de diversos fatores estruturais que influenciam os níveis de violência no Brasil. É amplamente reconhecido que se trata de um fenômeno complexo, cujo enfrentamento necessita de uma abordagem complexa. Problemas como a segregação urbana e a desigualdade de renda são questões que levarão décadas para serem efetivamente resolvidas. No entanto, meu objetivo com esta série é discutir reformas específicas que, incorporando boas práticas nacionais e internacionais, possam acelerar a melhoria dos indicadores de segurança pública. Estas, é claro, não eliminam nem negligenciam a importância dos fundamentos sociais da segurança pública.
Reformar os corpos policiais, privilegiando o mérito e a efetividade, emerge como um passo fundamental para revitalizar a segurança pública no Brasil. Recente publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre as carreiras e salários das forças de segurança pública brasileira revelou inúmeras distorções que, de um lado, impossibilitam grandes investimentos em novas contratações.
E, por outro lado, sinalizam para a importância de reformas no modelo de gestão de pessoas que valorizem as condições de vida e trabalho desses profissionais. Essa reforma não somente visa a melhoria na resposta à criminalidade, mas também deve contemplar programas de proximidade comunitária que envolvam atividades educativas e de conscientização, reforçando o papel da polícia como agente de promoção social e contribuindo para a elevação da qualidade de vida nas comunidades e dos próprios policiais.
A experiência de Nuevo León, no México, serve de modelo, onde a introdução da Fuerza Civil, uma nova força policial criada a partir de novas práticas de gestão de pessoal – como a seleção por competências e formação continuada – diferiu radicalmente das práticas anteriores e contribuiu a uma queda drástica de 75% na taxa de homicídios até 2014, em comparação com os dados de 2011 (Dorantes-Gilardi et al, 2020; Buderath e Heath, 2020, Villarreal Montemayor, 2016; Márquez and Bagatella, 2015). Esta reforma, focada em treinamento especializado e meritocracia, não só elevou a eficácia da segurança, mas também fez da carreira policial uma opção mais atraente para indivíduos altamente qualificados e vocacionados.
Oficiais com curso tecnólogo
No contexto argentino, a transformação da polícia de Buenos Aires após a transferência de sua gestão para a prefeitura local e a criação do Instituto Superior de Segurança Pública exemplificam outra intervenção bem-sucedida. Exigindo que cada oficial complete um programa de tecnólogo em segurança pública após um exame competitivo, a cidade atingiu a menor taxa de criminalidade em 27 anos, posicionando-se como uma das metrópoles mais seguras da América Latina. Esse investimento contínuo na capacitação dos profissionais de segurança, abrangendo desde análise de dados até o uso de inteligência artificial, sublinha a importância da educação e do aprimoramento de habilidades na promoção de uma força policial mais eficiente e adaptada às necessidades contemporâneas de segurança.
Em Medellín, a Empresa para la Seguridad Urbana (ESU), uma agência criada pela prefeitura, desempenha um papel crucial ao integrar inteligência artificial, análise de dados massivos (big data), sensores e drones nas operações de segurança. Desde a adoção dessas medidas de modernização em 2016, a cidade viu um aumento expressivo na recuperação de veículos e na resolução de casos criminais, evidenciando o impacto positivo da tecnologia na eficiência das forças de segurança.
Por outro lado, Buenos Aires implementou um sistema de vigilância abrangente, com 75% da cidade coberta por videovigilância, mais de 11.000 câmeras em espaços públicos, que inclui câmeras de vídeo em pontos estratégicos, além da integração de câmeras privadas ao sistema de monitoramento do governo, e um sofisticado Anillo Digital de Seguridad, composto por 564 leitores de placas e 120 câmeras de vídeo, reforça o controle nos acessos à cidade, complementando a estratégia de segurança com dados e tecnologia avançada.
A iniciativa do Mapa del Delito, que torna os dados de segurança acessíveis online, permite uma análise detalhada de padrões criminosos, contribuindo para diagnósticos mais precisos e avaliações efetivas das respostas policiais. A experiência de Buenos Aires, assim como a de Medellín, ilustra o potencial das tecnologias emergentes para transformar a segurança pública, destacando a importância da inovação tecnológica aliada à transparência e à participação cidadã na promoção de uma sociedade mais segura.
Lei Rouanet da segurança pública
Essas inovações sublinham a importância crucial da colaboração e do compartilhamento de conhecimento entre diferentes jurisdições para potencializar o combate ao crime organizado. Tal abordagem multifacetada não só eleva a eficácia no enfrentamento ao crime local e regional mas também estabelece um precedente para a cooperação internacional contra redes criminosas transnacionais, evidenciando a necessidade de estratégias que ultrapassem as fronteiras tradicionais de segurança. A relevância desse modelo estratégico se torna ainda mais crítica diante do avanço do crime organizado transnacional que afeta países como Paraguai e Chile, desafiando seus sistemas de segurança com violências originadas de grupos criminosos baseados no Brasil e na Venezuela.
A colaboração intersetorial surge como um elemento chave na reformulação das políticas de segurança pública, com exemplos notáveis em Nuevo León e no Brasil, onde a sinergia entre setores públicos, privados e a sociedade civil tem gerado resultados significativos. Em Nuevo León, a formação da Força Civil, concebida com a contribuição da “Alianza por la Seguridad“, ilustra o potencial desta cooperação, integrando conhecimento técnico de líderes empresariais, acadêmicos e organizações civis na estratégia de segurança.
Paralelamente, a “lei Rouanet da segurança pública” do Rio Grande do Sul representa uma inovação ao permitir que empresários contribuam com recursos para equipamentos de segurança, demonstrando um modelo eficaz de parceria público-privada. O envolvimento do Instituto Cultural Floresta nesta iniciativa evidencia como a mobilização de apoio privado pode fortalecer a infraestrutura de segurança pública, mostrando um caminho pragmático para o enfrentamento da criminalidade.
Momento propício para a inspiração
Além disso, a cooperação intergovernamental desempenha um papel fundamental no combate ao crime organizado, um desafio que transcende fronteiras administrativas e demanda uma resposta integrada. Iniciativas como o Pacto Pelotas pela Paz e o Pacto Niterói Contra Violência exemplificam abordagens inovadoras e integradas para promover a segurança pública, abrangendo desde a prevenção social até o uso estratégico de tecnologia e urbanismo.
Confira a Cartilha sobre a Construção de Um Observatório de Prevenção a Violência aqui! Quer aprender mais? Veja a trilha de conhecimento também aqui!
Estes pactos, apoiados pela Comunitas, têm alcançado reduções significativas nos índices de criminalidade, refletindo o impacto positivo de ações coordenadas que combinam reforço policial com programas de inclusão social e econômica. A experiência de Sobral com o programa “Sobral Cidade Viva“, focando na revitalização urbana, também reforça como estratégias de segurança podem beneficiar do engajamento comunitário e da melhoria do espaço público, contribuindo para a redução da violência e fortalecimento da coesão social.
Frente aos desafios impostos pela criminalidade, o Brasil encontra-se em um momento propício para buscar inspiração em modelos internacionais exitosos, adaptando-os à sua singularidade cultural e social. Tal empreitada visa não apenas a reconfiguração do panorama de segurança nacional, mas também aspira a garantir a todos os cidadãos brasileiros a possibilidade de vislumbrar um futuro mais sereno e seguro.
*Artigo originalmente publicado na Revista Exame, em parceria com Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
*Esse conteúdo pode não refletir a opinião da Comunitas e foi produzido exclusivamente pelo especialista da Nossa Rede Juntos.
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