Conciliar a preservação de direitos fundamentais com a efetividade da resposta penal é um dos principais impasses do sistema de justiça criminal brasileiro. A percepção de impunidade diante de crimes recorrentes, aliada à expectativa por decisões mais rápidas e rigorosas, tem alimentado um debate cada vez mais polarizado sobre a atuação do Judiciário.
O dilema do “prende e solta” não é apenas jurídico: ele reflete disputas sociais, institucionais e ideológicas sobre o papel do Estado no enfrentamento à criminalidade. Para parte da população, o sistema de Justiça solta rápido demais. Para outra, o problema está nas prisões em massa e nas condições precárias do sistema prisional.
No meio disso, estão os gestores públicos, pressionados a oferecer soluções que entreguem segurança sem abrir mão da legalidade e dos direitos. É nesse contexto que a Comunitas fomenta debates entre especialistas, gestores públicos e parlamentares, com o objetivo de qualificar discussões e apoiar propostas legislativas que tornem o sistema penal mais justo, eficiente e baseado em evidências.
Quer entender melhor sobre os desafios da segurança pública e o que é o debate prende e solta? Siga a leitura para saber mais!
O que é o “prende e solta”?
O termo “prende e solta” se refere, principalmente, à situação em que pessoas presas em flagrante são liberadas pouco tempo depois, frequentemente por decisão judicial em audiências de custódia. Essa dinâmica causa frustração entre policiais, autoridades e parte da população, que veem nisso um ciclo ineficaz: prende-se hoje, solta-se amanhã, e o crime continua. Mas, para entender de fato essa situação, é preciso olhar para as causas estruturais que o alimentam.
Conforme a Constituição Federal de 1988, a regra é que ninguém deve ser preso antes de uma sentença final – a prisão provisória deve ser exceção. Isso significa que o juiz só pode manter alguém preso antes do julgamento em casos específicos, como risco de fuga, ameaça à ordem pública ou possibilidade de reiteração do crime. O debate surge por conta desses critérios pois, embora estejam previstos em lei, são discricionários e podem ser interpretados de formas diferentes por juízes distintos.
Além disso, há um dado incontornável: o sistema prisional brasileiro está superlotado. Com mais de 900 mil pessoas privadas de liberdade, o país tem a terceira maior população carcerária do mundo. Muitas unidades operam acima de sua capacidade, sem condições mínimas de dignidade ou segurança.
Sistema Prisional em números | |||
Pessoas Privadas de Liberdade | Déficit de Vagas | ||
2023 | 2024 | 2023 | 2024 |
846.021 | 909.594 (+6,3%) | 214.819 | 237.694 (+10,6%) |
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2025
Esse cenário gera uma pressão permanente sobre o Judiciário, que muitas vezes opta por medidas alternativas à prisão para evitar o agravamento da crise – como liberdade provisória com tornozeleira eletrônica ou comparecimento periódico ao fórum. O problema é que essas medidas, na prática, nem sempre são monitoradas de forma eficaz, o que gera nova sensação de impunidade.
A combinação entre crime recorrente, soltura rápida e pouca fiscalização ajuda a explicar por que o debate sobre o “prende e solta” voltou com tanta força à pauta pública. Um dos principais motores dessa discussão é a criminalidade de rua, especialmente furtos e roubos, muitas vezes cometidos por jovens em situação de vulnerabilidade social. Esses crimes, embora vistos como “menores” do ponto de vista jurídico, têm alto impacto na vida das pessoas e na sensação de insegurança.
Considerações importantes
Para além da disputa de narrativas, é preciso encarar os gargalos concretos que dificultam uma resposta mais eficaz à questão da privação de liberdade. O primeiro deles é a fragilidade no monitoramento das medidas alternativas à prisão. Em muitos estados, há escassez de tornozeleiras eletrônicas, limitação de cobertura geográfica e baixa integração entre os órgãos responsáveis por acompanhar as pessoas em liberdade provisória.
Mesmo quando o juiz determina condições como o uso do dispositivo eletrônico, comparecimento periódico ou restrição de horários, a ausência de uma estrutura eficaz de fiscalização esvazia o sentido da medida. Assim, medidas que poderiam representar uma resposta proporcional ao delito e evitar o encarceramento desnecessário acabam vistas como permissivas e ineficientes, gerando descrédito junto à população e às forças de segurança.
Esse problema não se resume à escassez de equipamentos. Falta um modelo institucional mais robusto de gestão das alternativas penais, que envolva desde a articulação entre Poder Judiciário, Ministério Público e Defensorias até a implementação de políticas públicas de saúde mental, assistência social, ressocialização e reinserção de egressos na sociedade.
Como discutido no Grupo de Trabalho de Segurança Pública da Comunitas, é importante que os estados e municípios invistam em serviços especializados de acompanhamento, com equipes técnicas capazes de atuar de forma multidisciplinar e territorializada para além da lógica punitiva.
Caminhos para enfrentar o desafio
Diante dos gargalos estruturais que dificultam respostas mais eficazes à segurança pública, é possível identificar caminhos que podem ajudar a reorganizar o debate e impulsionar ações mais consistentes.
Em vez de reforçar apenas a lógica punitiva, essas trilhas propõem integrar diferentes dimensões da política pública, com foco na prevenção, na qualificação da repressão, na sustentabilidade das alternativas penais e na reconstrução da confiança social nas instituições.
Entre essas trilhas, destacam-se:
- A integração de políticas públicas exige que a segurança caminhe junto com educação, assistência social e saúde mental, especialmente em territórios marcados pela violência;
- O fortalecimento de operações assertivas depende do uso de inteligência para desarticular cadeias econômicas do crime, e não apenas realizar prisões em flagrante;
- Um foco legislativo estratégico passa por priorizar projetos com impacto real e viabilidade política, como o fortalecimento dos que tratam de prisão preventiva, execução penal e investigação;
- A gestão das alternativas penais precisa incluir mais tornozeleiras, centrais de acompanhamento e programas de qualificação e inserção no mercado de trabalho;
- A promoção da transparência e da escuta pública envolve divulgar dados sobre reincidência, lotação carcerária e cumprimento de medidas alternativas, ajudando a recuperar a confiança da população nas instituições.
Para que essas estratégias sejam efetivas, antes é preciso reconhecer a necessidade de se ampliar a corresponsabilidade dos entes subnacionais, garantindo que os planos estaduais reflitam as especificidades locais e contribuam para a consolidação de uma política nacional integrada e mais eficaz. Ao mesmo tempo, é necessário que a governança dessas ações esteja bem estruturada, com responsabilidades definidas, metas claras e mecanismos contínuos de monitoramento e avaliação.
Para enfrentar os desafios de segurança pública no município de Pelotas (RS), a gestão pública lançou um sistema de cooperação entre governo e sociedade civil para promover a segurança e a cultura da paz na cidade. Como centro da estratégia, mobilizou-se ações integradas e setoriais entre as secretarias de Pelotas como forma de combater a criminalidade com base em evidências, monitoramento de indicadores e acompanhamento social.
Isso passa também pela racionalização dos indicadores utilizados, evitando excessos que dificultem a coleta de dados e priorizando métricas que realmente contribuam para o aprimoramento das políticas. Sendo também assegurada a sustentabilidade das ações para que as fontes orçamentárias sejam compatíveis com a complexidade e a abrangência das propostas.
Para saber mais sobre, acesse o Policy Brief – Pena Justa: Por um Sistema Penal Eficiente, Digno e Constitucional, que é resultado dos encontros de especialistas com lideranças públicas presentes no GT de Segurança Pública da Comunitas.
A superação dos impasses na área penal passa por reconhecer que a segurança pública não se resolve apenas com mais prisões, nem com decisões judiciais tomadas sob pressão. É preciso construir um caminho baseado em dados, articulação institucional e compromisso com a redução da violência e da reincidência. Para isso, a atuação coordenada entre União, estados e municípios é essencial, assim como a estruturação de mecanismos de financiamento sustentáveis e a definição de metas claras, monitoráveis e adaptadas às realidades locais.
E você, gestor? Já refletiu sobre como uma abordagem integrada pode transformar a segurança pública no seu território? Para aprofundar o debate sobre segurança pública e construir soluções eficazes, acompanhe as próximas publicações da Rede Juntos!
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