O fortalecimento das parcerias público-privadas de impacto social é essencial para o Brasil, visto que pode garantir segurança jurídica aos investidores e impulsionar a modernização da gestão pública. Ao delegar a execução de projetos a entidades privadas, o Estado pode oferecer serviços públicos de qualidade que, de outra forma, não teria condições de prestar sozinho, assegurando a continuidade e sustentabilidade dessas ações.
Nesse sentido, o projeto “Mapa da Contratualização”, liderado pela Comunitas, é uma iniciativa que busca democratizar o conhecimento sobre os processos de contratualização de serviços públicos no Brasil, oferecendo uma visão abrangente das parcerias público-privadas de impacto social no país.

Sede do Porto Digital, no Recife Antigo. Crédito da Imagem: Divulgação
Dentre as mais de 7 mil parcerias mapeadas pelo projeto, os municípios se destacam como protagonistas na formalização de parcerias com o setor privado, abarcando uma fatia de 63,1% do total analisado. Em sua 3ª edição, o Mapa destaca 39 experiências bem-sucedidas realizadas em diversos territórios para inspirar e apoiar gestores públicos de todo o Brasil na elaboração de seus planos de governo. Um desses casos é o Porto Digital, no Recife (PE).
Visão do gestor: do contrato de gestão à autonomia do Porto Digital
Em entrevista para a Comunitas, César Andrade, Diretor de Inovação na Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado de Pernambuco, compartilha insights sobre a bem-sucedida trajetória de contratualização que permitiu ao Porto Digital evoluir de um projeto dependente de recursos públicos para um ecossistema de inovação autossustentável, que hoje fatura bilhões e exporta seu modelo. Confira a seguir:
1. Mesmo não tendo participado da contratualização, pode explicar por que surgiu a demanda pelo Porto Digital e qual necessidade esse contrato de gestão veio atender?
A demanda pelo Porto Digital surgiu de uma mobilização do ecossistema local, liderada por professores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em conjunto com o Governo do Estado de Pernambuco, então sob a gestão do governador Jarbas Vasconcelos. A proposta era criar um ambiente de inovação inspirado no modelo do Vale do Silício, mas “tropicalizado” e adaptado às necessidades e realidades específicas de Pernambuco.
Quanto ao contrato de gestão, ele foi vislumbrado como o instrumento jurídico ideal para atender a uma lacuna fundamental dentro da máquina pública: a necessidade de descentralizar a execução de atividades que não são de caráter exclusivo do Estado. O governo precisava de uma organização social com a competência não apenas para gerir, mas principalmente para “animar” o contexto de um ambiente de inovação, fortalecendo o habitat de negócios e fomentando a consolidação de um ecossistema dinâmico.
Este contrato foi estruturado com base em objetivos estratégicos claros, que refletiam as prioridades do Estado à época, como incrementar a competitividade, trabalhar a cultura inovadora, promover a inserção de gênero, gerir processos de incubação, captar recursos e melhorar a infraestrutura. Além disso, o contrato de gestão foi crucial para revitalizar uma área física degradada, o Recife Antigo, que estava abandonada após décadas de uso como porto de carga, transformando-a em um polo de geração de negócios de tecnologia com padrão de excelência mundial.
Em resumo, o contrato de gestão surgiu para preencher a lacuna da gestão ágil e especializada que a administração pública, por si só, nem sempre consegue oferecer, permitindo que uma organização social conduzisse o projeto com foco em resultados, enquanto o governo garantia o alinhamento com suas políticas públicas estratégicas.
2. Existem duas unidades no Armazém da Criatividade com contrato de gestão, certo? E o Porto Digital não tem contrato de gestão com o governo?
Atualmente, existe apenas uma unidade em operação do Armazém da Criatividade, que está localizada em Caruaru. Sendo que há outras unidades ainda em processo de implantação e expansão para outras mesorregiões do Estado, como o Agreste e o Sertão, em um cronograma que se estenderá até 2026.
Quanto ao Porto Digital, a história é um exemplo de sucesso de política pública. No seu início, o Porto Digital dependia de um contrato de gestão com o governo do Estado para seu funcionamento e financiamento. No entanto, devido ao seu extraordinário crescimento e consolidação no ecossistema de inovação – que teve um faturamento de R$ 5,4 bilhões apenas em 2023 -, o Porto Digital atingiu maturidade e independência financeira. Ele criou suas próprias pernas e chegou um momento em que ele não precisava mais do contrato de gestão para o seu funcionamento.
Hoje, a parceria se restringe ao projeto de interiorização, representado pelo contrato de gestão do Armazém da Criatividade, enquanto o núcleo original no Recife Antigo opera de forma autossustentável, com o governo mantendo apenas uma cadeira em seu conselho deliberativo para acompanhamento e sinergia com as políticas estaduais.

Vista do Marco Zero com o Porto Digital. Crédito da Imagem: Divulgação
3. Mesmo sem ter participado diretamente da decisão, você poderia comentar o que sabe sobre o processo de elaboração do Plano de Trabalho? Houve muitas modificações? E, nesse contexto, vocês avaliaram outras modalidades de contratualização além do contrato de gestão, como, por exemplo, uma PPP?
Mesmo não tendo participado diretamente da decisão inicial, posso comentar que o processo de elaboração do Plano de Trabalho foi marcado por uma construção coletiva e participativa. O termo de referência e o desenho contratual foram desenvolvidos a várias mãos, reunindo representantes do governo, academia e sociedade civil em um processo que se assemelha ao que hoje se conhece como “diálogo competitivo”. Essa abordagem permitiu que os atores-chave do ecossistema – incluindo o Departamento de Informática da UFPE, gestores governamentais da época e outras entidades – discutissem, criassem fóruns e colaborassem ativamente na formatação do modelo.
Quanto à evolução do plano, entendemos que se tratou de um modelo dinâmico, que foi se adaptando ao longo do tempo. O contrato de gestão atual, por exemplo, está passando por um aditivo para expandir a atuação para outras mesorregiões, demonstrando que o plano sofre ajustes conforme novas necessidades e estratégias surgem, como a atual política de interiorização.
Sobre outras modalidades de contratualização, para aquele contexto específico, o contrato de gestão mostrou-se o instrumento mais adequado. A possibilidade de outros modelos, como uma Parceria Público-Privada (PPP), foi de fato considerada, porém a análise concluiu que o contrato de gestão melhor se alinhava à necessidade de envolver múltiplas entidades e garantir uma governança participativa. Mas não houve uma “caixa fechada” ou solução universal – a escolha dependeu de variáveis como o arranjo institucional local, a presença de atores relevantes e os objetivos específicos da política pública. O essencial foi adotar um modelo que permitisse a efetiva participação da tríplice hélice (governo, iniciativa privada e academia) em uma construção conjunta e adaptada à realidade pernambucana.
4. Você poderia comentar os principais desafios enfrentados no processo de contratualização com o Núcleo de Gestão do Porto Digital (NGPD)? Quais ajustes precisaram ser feitos e como foi a comunicação do projeto para a sociedade, garantindo que todos entendessem a finalidade e os benefícios do processo?
O processo de contratualização com o NGPD, em sua fase atual, não é considerado um desafio, mas sim um procedimento consolidado e tranquilo. A secretaria está em uma posição de vantagem, uma vez que as eventuais dificuldades iniciais já foram superadas. O instrumento do contrato de gestão mostrou-se adequado, e o fato de o NGPD já possuir competência comprovada facilita qualquer novo processo licitatório, tornando os ajustes contratuais ágeis, principalmente quando realizados via aditivos, como o atual para a interiorização.
Quanto aos ajustes necessários ao longo do tempo, o principal mecanismo tem sido a utilização de aditivos contratuais para expandir o escopo de atuação, como é o caso da atual ampliação para outras mesorregiões de Pernambuco. Esse processo é facilitado pelo diálogo direto e constante com o NGPD. A governança é fortalecida pela participação do governo em cadeira cativa, com direito a voz e voto no conselho deliberativo da organização social, assegurando alinhamento estratégico.
Sobre a comunicação com a sociedade, o princípio da transparência é fundamental. Por se tratar de recurso público, todo o processo é publicizado. O contrato de gestão em si e suas informações são disponibilizados ao público, permitindo que qualquer cidadão ou entidade possa acessar e entender os termos do acordo. Essa transparência é crucial para construir legitimidade e confiança.
Além disso, a comunicação do propósito e dos benefícios do projeto vai além da divulgação de documentos. Um aspecto central da estratégia é a demonstração prática do valor gerado. A revitalização de áreas degradadas, a criação de empregos qualificados e a atração de investimentos privados servem como testemunhos tangíveis do impacto do Porto Digital para a população. A premissa adotada não é a de deslocar ou excluir os antigos moradores e comerciantes, mas de “oportunizá-los”, oferecendo a eles linhas formativas para que possam se integrar à nova economia. Dessa forma, a comunicação se dá não apenas por palavras, mas por resultados visíveis que mostram a transformação positiva no território e na vida das pessoas, reforçando a finalidade pública da iniciativa.
5. Você poderia comentar se o contrato de gestão do Porto Digital previa indicadores de desempenho? E como esses indicadores foram pensados ou ajustados nos aditivos posteriores?
O contrato de gestão do Porto Digital não apenas previa indicadores de desempenho, como esse foi um dos pilares para o seu sucesso e monitoramento.
O contrato foi originalmente estruturado em torno de 7 objetivos estratégicos macro, que foram desdobrados em 21 metas específicas, cada uma acompanhada de seus respectivos indicadores. Esse desenho garantiu que a atuação do NGPD estivesse sempre alinhada com as prioridades de interesse do Estado de Pernambuco, que incluíam incrementar a competitividade, fomentar uma cultura inovadora, trabalhar a inserção de gênero, gerir processos de incubação, promover a inovação aberta, captar recursos e melhorar a infraestrutura.
O processo de monitoramento é sistemático e rigoroso. Uma Comissão de Monitoramento e Avaliação (CMA), preponderantemente formada por representantes de várias secretarias de governo (como a de Ciência e Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Planejamento), é a responsável por acompanhar o cumprimento dessas metas. O modelo que foi adotado segue um padrão de excelência, similar ao do Google, com aferições trimestrais. A cada três meses, o NGPD precisa prestar contas sobre o atingimento dos indicadores e a entrega dos itens previstos, que são baseados em números absolutos para maior clareza.
Caso as metas não sejam cumpridas, o contratado precisa apresentar uma justificativa técnica robusta. O não cumprimento pode acarretar glosas (não pagamento) parciais ou totais do relatório, sujeitando o valor a juros, o que garante um mecanismo de pressão para a devida execução.
No que diz respeito aos aditivos posteriores, como o que está em curso para a interiorização, o processo de construção dos novos indicadores segue a mesma lógica colaborativa que marcou a origem do projeto. Os indicadores são pensados e ajustados em conjunto entre o Governo do Estado e o NGPD. Eles não são simplesmente replicados do modelo bem-sucedido da capital. A gente reconhece que o perfil econômico e as necessidades do interior são diferentes. Enquanto no Recife o foco é o empreendedorismo inovador e P&D (pesquisa e desenvolvimento), no Armazém da Criatividade de Caruaru, por exemplo, a ênfase inicial foi na economia criativa. Assim, os indicadores são adaptados à realidade local, buscando gerar um sentimento de pertencimento e, gradualmente, “pivotar” (fazer uma mudança estratégia) ou expandir as temáticas para outras áreas de interesse para a competitividade estadual, sempre por meio de um processo coletivo de construção.
6. Você mencionou que o NGPD tem um núcleo de representação. Quais setores estão representados nesse conselho?
A composição do conselho do NGPD segue o modelo de governança multiparticipativa, fundamental para o sucesso da iniciativa. A estrutura foi desenhada de forma a garantir uma tríplice, quádrupla ou até quíntupla hélice funcionando de maneira real e efetiva, assegurando que diversos atores relevantes do ecossistema de inovação tenham voz e voto nas decisões. Os membros do conselho são:
- Governo: Existe uma participação institucional direta do Governo do Estado, com cadeiras cativas ocupadas por secretarias estratégicas, a exemplo da Secretaria de Ciência e Tecnologia (SECT) e a Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Quem participa dessas reuniões são os próprios secretários, e não apenas técnicos, o que confere peso político e agilidade decisória à participação do governo.
- Academia: A presença da academia é um pilar histórico do Porto Digital, remontando às suas origens com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Instituições de ensino e pesquisa, como ICTs (Instituições de Ciência e Tecnologia), têm assento no conselho, garantindo a ligação entre o conhecimento científico e a aplicação no mercado.
- Sociedade e setor produtivo: O conselho também é integrado por representantes da sociedade civil e de entidades do setor privado. Essa inclusão é crucial para que a organização social reflita os anseios da comunidade e as demandas reais do mercado, assegurando que as ações do NGPD sejam pragmaticamente orientadas para os negócios e a geração de impacto social.
Todas essas informações, incluindo a lista completa das instituições e os nomes dos conselheiros, são de domínio público e estão disponíveis no site do Porto Digital, em conformidade com a obrigação de transparência que um contrato de gestão com recursos públicos exige.
7. Como os municípios participam desse processo de interiorização, tanto no projeto original em Recife quanto na atual expansão?
A participação dos municípios no processo de interiorização do Porto Digital segue um modelo aberto e colaborativo, que foi sendo aprimorado desde o projeto original no Recife até a atual expansão para o interior do Estado.
No caso do Recife, a prefeitura teve um papel ativo e institucionalmente mais robusto, criando um sandbox regulatório dentro do território do Porto Digital para fomentar a inovação. Além disso, a municipalidade promove ativamente a atração de empresas para o polo, oferecendo seus próprios incentivos, embora o programa de desenvolvimento econômico do Governo do Estado ofereça condições mais vantajosas para quem se instala no interior.
Já na interiorização, o modelo de participação municipal se adapta à realidade de cada localidade, que geralmente não possui a mesma capacidade de investimento que a capital. O caso de Caruaru, onde está localizado o Armazém da Criatividade, exemplifica bem. Lá, a prefeitura não entrou com aporte financeiro direto, mas sim com uma cessão de espaço físico para a instalação do projeto. O Governo do Estado, por sua vez, entra com os recursos financeiros por meio do contrato de gestão, e o NGPD fica responsável pela operação, incubação e aceleração de negócios. Trata-se, portanto, de uma parceria em que o município contribui com ativos locais (como imóveis), o Estado com o financiamento e a expertise gerencial, e o setor produtivo com a execução.
Esse modelo é entendido como o mais aplicável para a realidade atual da interiorização. Muitas prefeituras não têm condições de fazer investimentos financeiros diretos, mas podem ceder espaços, que nem precisam estar em condições ideais de uso, pois o projeto tem capacidade de captar recursos externos para realizar retrofits e adequações. Para municípios com maior capacidade financeira, como os da região do ABC em São Paulo, o modelo poderia ser diferente, envolvendo até mesmo contribuições financeiras diretas ou a criação de um marco legal local para ciência, tecnologia e inovação, permitindo que atuem como sandboxes para validação de tecnologias.
Em resumo, a participação municipal se dá principalmente por meio da oferta de infraestrutura física e da criação de um ambiente favorável, em uma sinergia em que cada ente – governo estadual, municipal e setor produtivo – contribui com o que tem de melhor.
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