Democracia e governabilidade: Uma perspectiva acadêmica sobre o semipresidencialismo
Foto: Rodrigo Meneghello
A opinião acadêmica sobre o semipresidencialismo no Brasil
É comum no Brasil há alguns anos haver discussões sobre reforma política. E, por esse mesmo motivo, desde quando se percebeu na ciência política que o tema de instituições fortes é importante para o desenvolvimento de um país, houve uma divisão de opiniões dentro dessa tribo onde alguns cientistas se entendem por reformadores convictos, enquanto outros que se veem como institucionalistas mais moderados. Dentre uma série de temas de reformas na agenda deste ano, existem duas discussões sensíveis a serem analisadas: a primeira é a questão da reforma eleitoral, e a outra referente a reforma do semipresidencialismo. Olhando pela ótica moderada de Maria Hermínia Tavares, professora da USP, as duas discussões não parecem apresentar soluções factíveis e necessárias para o desenvolvimento do Estado brasileiro. Mas antes de se aprofundar no tema, ela deixa um alerta: se um presidente não tem apetite para governar e administrar, não tem instituição que o modifique. Se um presidente joga contra as instituições, elas podem até aguentar, porém se encontrarão em uma situação difícil. Além disso, quando uma parte significativa da população se sente distante e excluída dos resultados e do funcionamento do sistema político, a democracia estará sempre assentada em um terreno movediço. E o Brasil é um país que desde que se mede a opinião popular sobre regimes democráticos, diz que tanto faz o regime ser uma democracia ou uma ditadura para grande parte da população. Esta percepção popular não pode ser deixada de lado nunca pois mostra que essa fragilidade não é institucional.
No Brasil, há um sistema político que é conhecido por presidencialismo de coalizão, que se caracteriza-se por ser um sistema que possui uma série de mecanismos que dificulta a concentração de poder decisório no governo central. O presidencialismo de coalizão tem suas vantagens, pois é um sistema que cria uma série de barreiras para governos que desejam concentrar a capacidade decisória para fazer o mal, mas ao mesmo tempo é um sistema que tende produzir mudança de forma muito lenta e moderada, e requer muita negociação e paciência por parte das lideranças políticas. E no caso brasileiro, os custos da negociação são altos, seja de recurso ou de tempo etc., são altos. E tem se tornado cada vez mais alto devido a fragmentação que vem enfrentando.
Na opinião de Maria Hermínia, o problema é a quantidade de partidos políticos. Pois estudos mostram que uma redução do número de partidos e uma redução dos custos para produzir uma coalizão de partidos mais próximos são mais eficazes do que as coalizões mais heterogêneas. E hoje, com a quantidade de partidos políticos existentes no sistema brasileiro, caminhou-se para coalizões mais heterogêneas, já que a maioria dos partidos são pequenos e precisam se aliar para possuir o quórum necessário. Espera-se que com a última reforma que esse problema seja resolvido, dado que houve o fim das coalizões nas reformas proporcionais que estabeleceram cláusulas de desempenho, apresentarão resultados muito significativos no que diz respeito à redução da fragmentação política. Estudantes da FGV apresentaram estudos que mostram que a quantidade de partidos eleitos nas eleições municipais já diminuiu consideravelmente, logo, caso este movimento continue ocorrendo em mais algumas eleições, o número de partidos existentes será bem menor do que atualmente, deixando o sistema político mais razoável no que tange ao seu tamanho.
Segundo a professora da USP não se parece necessário realizar uma mudança tão grande no sistema político, tendo em vista que determinados ajustes podem aperfeiçoar os detalhes. Por este motivo e por conta de estudos apresentados sobre semipresidencialismo, ela destaca que o problema parece continuar sendo o mesmo, conseguir a maioria no parlamento. Deste modo, a mudança no sistema político para o semipresidencialismo, não parece resolver o problema que enfrentamos atualmente na política brasileira. Além disso, por muitas vezes na política quando se escolhe uma saída, guia-se pelo melhor exemplo. Porém, neste caso não se pode esquecer que semipresidencialismo foram quase todos os países da Europa Oriental que não foram bem-sucedidos. O que Maria Hermínia bem ressalta é que parece não existir um equilíbrio no sistema semipresidencialista, pois algumas vezes tende para características mais presidencialistas e outras para características parlamentaristas. Por este motivo, o semipresidencialismo não aparenta ser um sistema superior ao presidencialismo ou ao parlamentarismo, pois no final do dia, ele acabará tornando-se um ou outro.
Para concluir, Maria Hermínia afirma que existe sim um problema no sistema político institucional, o qual tem a ver com a extrema fragmentação político-partidária, e, portanto, com a dificuldade de construir maioria para governar. Há também um problema adicional que se constitui na chefia do executivo, pois o presidente tem sabotado o que se foi construído nos últimos 25 anos, e não há questão constitucional que resolva. E, por fim, a questão da sociedade que não se vê como parte de um sistema político.
Olhando para um ponto de vista institucional conservador, o presidencialismo multipartidário brasileiro foi fruto de uma engenharia institucional muito interessante. A escolha de manutenção de um sistema eleitoral que garantia a sobrevivência de uma reeleição dos parlamentares e, que garantia o multipartidarismo, gerava incentivos para a ingovernabilidade. De acordo com Carlos Pereira, professor da FGV-RJ, a saída que o constituinte encontrou para essa questão foi a transferência de poderes para o executivo. Isto porque, a literatura de ciências políticas afirma que o presidencialismo não gera partidos políticos fortes, pois são ideologicamente frágeis. Consequentemente, em um espaço de multipartidarismo, os partidos se tornam ainda mais fracos, levando o presidente a não desfrutar de uma maioria legislativa, e precisando construi-la para que se possa governar. Logo, o presidente precisa ser forte, além de apresentar dispositivos constitucionais e orçamentários que se mostrem capazes de atrair suporte. Ou seja, o presidente se apropria dos partidos que não possuem interesse em trilhar o caminho presidencial e alia-se a eles de modo que consiga governar. Esse é o modelo virtuoso brasileiro, além de possuir um custo relativamente baixo devido às formações de coalizões pós-eleitorais, ele gera governabilidade. Prova disso foram os governos anteriores ao atual, que se mostraram bem-sucedidos. Por este motivo, questiona a real necessidade de realizar uma reforma no sistema político: “Por que precisamos reformar? E reformar o que?” dado que este mecanismo se mostra suficiente para gerar equilíbrio entre os atores políticos. De acordo com Carlos, quando existe um presidente constitucionalmente muito forte e com capacidades de interferência na agenda legislativa, surge o problema, que é como controlar o presidente. Este foi o dilema que o constituinte brasileiro enfrentou e que já deu respostas muito adequadas. Como é o caso da constituição de um sistema vigoroso de checks and balances no fortalecimento da independência do judiciário e do ministério público, que atuam de forma ativa e vigilante. Além dos mecanismos citados, encontram-se outros na constituição brasileira que impossibilitam um presidente fazer tudo o que deseja.
Entretanto, é fundamental pontuar que o presidencialismo de coalizão não foi criado para ser eficiente, e sim para ser inclusivo. Ou seja, para gerar inclusão de interesses dentro do jogo e controle mútuo. E, mesmo que um presidente negue a existência desse modelo e o reduza a uma comparação de que o presidencialismo de coalizão como um todo gera corrupção, o presidente foi forçado a se comportar de acordo com o que as instituições assim definem. Ainda que o presidente Bolsonaro deseje governar de uma forma unilateral, o sistema multipartidário de coalizão protege a instituição de modo a criar um escudo protetor quanto a iniciativas indesejadas. Logo, conclui-se que nesse sentido, o sistema de presidencialismo de coalizão é extremamente virtuoso. Isso pode ser comprovado através da estabilidade democrática existente no país, bem como a submissão das regras do jogo por parte de um presidente que atenta a todo minuto contra a instituição. E, apesar de ter havido impeachments ao longo dos anos de uma jovem democracia, foram feitos com bases constitucionais e de maneira acertada, o que não desestabilizou o sistema político brasileiro. É preciso ver esta ideia de mudança no regime político brasileiro com base em um equilíbrio geral. Quando uma peça do tabuleiro é movimentada, todas as outras peças se movimentam junto. Ou seja, uma vez que uma ação é tomada, todo o sistema político é alterado, o que alteraria o status quo, e dado o atual cenário, não se faz necessário que o mesmo aconteça. É esperado sim, um retrocesso nas políticas públicas quando um governante se mostra pré-moderno, entretanto isto não justifica que haja um retrocesso institucional, quando as instituições se mostram extremamente fortes e funcionais. Além disso, quando adaptada a realidade atual para um semipresidencialismo, Carlos acredita que torna o sistema ainda mais ineficiente pois cria-se mais possibilidades para vetos. Logo, a inquietação perante o tempo de governo de um presidente indesejado não será resolvida através de uma mudança de sistema. Além do que já existe um sistema para lidar com isso, que é o impeachment.
Como explicar a perspectiva apresentada de um sistema que funciona, mas que tem uma percepção em massa que aparenta estar em falência?
Carlos pontua que a democracia raramente seleciona os melhores, e quando seleciona em pouco tempo a sociedade se frustra. Esta característica é o que faz de a democracia ser fascinante e haver essa competição política, a necessidade de que a escolha feita seja exitosa no fim da história. Por este motivo, as pessoas acreditam que por meio do sistema democrático o regime político brasileiro dará respostas eficientes. Entretanto, este nunca foi o jogo do sistema político brasileiro. A promessa do regime de presidencialismo de coalizão é sobre estabilidade democrática, diminuição de desigualdades, equilíbrio macroeconômico, crescimento econômico, entre outros. Essas propostas foram sim atingidas, porém feitas por péssimos gerentes. Este fato pode ser visto através do governo de Bolsonaro, o qual se nega ser um gerente. O mesmo ocorreu no governo do ex-presidente Lula, que fez coalizões heterogêneas e desproporcionais, sem compartilhar poderes e recursos com os parceiros, tratando-os de forma desigual, o que gerou animosidade e ressentimentos com os parceiros, o que explica a forte rejeição do Congresso no governo Dilma.
Já Maria Hermínia pontua sob um ponto de vista diferente, onde mesmo tendo no poder um presidente que não gosta de governar e com um congresso extremamente fragmentado e composto por parlamentares que foram treinados em outras profissões que não a política, conseguiram aprovar algumas reformas dificílimas e muito importantes, como por exemplo a reforma da previdência. É claro que talvez não tenha sido a quantidade ideal e desejada pela maioria, porém foi um feito obtido nesta administração. Quando se analisa sob a ótica de um público mais amplo, o muito que foi feito ainda parece pouco, diante do grau de pobreza e desigualdade do país. Ou seja, esta sensação de mal-estar do povo brasileiro quanto à democracia e as instituições brasileiras representam uma realidade distorcida da atual situação. Isto porque segundo o latino barômetro, a população brasileira percebe o governo da mesma maneira que países como Honduras, Guatemala e El Salvador. Países os quais possuem uma história política muito diferente da brasileira. Este mal-estar ascendente justifica-se pelo fato da crise vivenciada pelo país na década de 10. Enquanto no governo do FHC, 15% da população brasileira gostava do sistema partidário, atualmente este número diminuiu para 8%. Logo, existe sim um sentimento na sociedade proveniente desta crise pois não há nela a sensação de estar vivendo uma vida próspera. A sociedade brasileira hoje precisa lidar com os altos índices de violência, pobreza… E isto viabiliza a construção de uma base respeitável e de peso para a extrema direita. Já que depois de todo esse período de desgoverno, adicionado ao cenário de pandemia, o presidente continua tendo uma parcela considerável da população que gosta ou acha razoável o atual governo. Esta situação sim acaba por minar a democracia brasileira.
Segundo Carlos, também deve-se lembrar que houve uma reversão de expectativa muito grande. No pós-governo Fernando Henrique, no governo Lula e no início do governo Dilma, o Brasil obteve um crescimento econômico muito acelerado, o que gerou ganhos bastante expressivos referente a qualidade de vida da população. Por isso, imaginou-se que o Brasil estava em uma ascendência que colocaria o país em um outro patamar, o que não veio a ocorrer. Isto porque o governo Dilma promoveu uma série de erros catastróficos que voltou com o Brasil para uma trajetória inflacionária, levando o país a uma situação de déficit público. Esse cenário acabou gerando uma frustração enorme na população. Além disso, também houve um choque na política brasileira do país que foi a Operação Lava Jato, que descobriu esquemas gigantescos de corrupção dentro da máquina pública, o que também gerou muita frustração. E com isso, a instituição brasileira multipartidária foi responsabilizada por este cenário que se formou, porém o problema não está no sistema político. É fundamental recordar que outros sistemas políticos também sofrem do mesmo mal de corrupção, ou seja, a solução não está na mudança do regime.
Existe alguma mudança que seria bem-vinda neste momento para andarmos para frente?
De acordo com Maria Hermínia, a reforma mais importante foi feita, que foi o final das coligações e a cláusula de desempenho, que gerará frutos daqui há algum tempo, quem sabe em duas eleições. Isso porque alguns partidos optarão por deixar de ser partidos e se juntarão com outros. Porém isso só ocorrerá se deixarem o sistema funcionar como manda a regra, pois caso decidam continuar seguindo o caminho do distritão e sistema misto, essa mudança não irá acontecer. Em contrapartida, Carlos acredita que é necessário pensar em duas reformas no sistema político, mas não no sistema eleitoral e de regime político. Uma delas focada em criar barreiras no Ministério Público para impedir que o presidente da república utilize a PGR como um instrumento de contenção, de modo que se faz necessário pensar em uma outra fórmula para a nomeação de um Procurador Geral da República. Nesta mesma linha, é a questão de restringir o poder do presidente de indicar qualquer pessoa para o cargo, como por exemplo indicar uma lista tríplice para responder ao cargo, que não somente o presidente.
Como vocês enxergam o Brasil neste momento?
Maria Hermínia pensa que ainda que haja uma fragmentação com relação à sociedade civil, há uma parte grande da sociedade que auxilia nos movimentos sociais que estão acontecendo ao longo do espectro federal, como as organizações da sociedade civil, a questão de governanças compartilhadas, o ativismo do meio ambiente, entre outros. Porém, obviamente, representa uma minoria da sociedade organizada que acaba por não impactar o sistema eleitoral, ou de conter as tomadas de decisão governamentais. Em contrapartida, o que é novo é a organização de uma grande parcela da sociedade civil a favor da direita e extrema direita. Ou seja, não se pode olhar apenas para as forças que podem conter um desastre democrático pois apesar de serem fortes e organizadas, não são mais os únicos atores da sociedade organizados. Carlos prefere seguir na linha de pensamento de Darren Acemoglu em seu livro Corredor Estreito, onde relata que a democracia fica capenga se depender apenas de instituições federais. Logo, o Estado deve sim ser forte, porém o que impede a tirania no Estado é uma sociedade também forte, capaz de dar os limites aos poderes centralizadores.
Pensando a curto prazo, o olhar para a continuidade democrática está mais otimista ou pessimista?
Para Maria Hermínia, não há ainda uma resposta concreta. Especialmente porque ainda existem questões que ameaçam a democracia, como a questão das forças armadas e o grau de compromisso com a institucionalidade. Ao mesmo tempo, como disse Marcos Mello, o Brasil é um transatlântico e que para um transatlântico virar é difícil. Essa é a esperança que fica quando o assunto é continuidade democrática. Já para Carlos, não existe um risco de ameaça à democracia brasileira. Não por conta do presidente, mas pela sociedade vigilante e as instituições que têm se mostrado forte e preparada ao longo dos anos, dando respostas à altura das ameaças.
Quer saber mais sobre o semipresidencialismo e se aprofundar no tema?
Confira aqui alguns materiais acadêmicos que podem te ajudar nessa descoberta
Presidentes e (Semi)presidencialismo nas Democracias Contemporâneas
António Costa Pinto e Paulo José Canelas Rapaz
Comparative Politics: Interests, Identities and Institutions in a Changing Global Order
Jeffrey Kopstein, Mark Lichbach e Stephen E. Hanson
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