Contratualizações na educação pública: Lições das inovações nas experiências nacionais
A oferta de educação pública de qualidade é um dos principais desafios das cidades brasileiras. Para superar esse gargalo, gestores públicos precisam conciliar boa gestão com inovação, eficiência e responsabilidade fiscal. Bons exemplos nessa linha têm surgido por meio de contratualizações que firmam parcerias entre o poder público e organizações da sociedade civil com experiência educacional.
Nesse cenário, as contratualizações focam em preservar o papel regulador e fiscalizador do Estado, enquanto organizações privadas conduzem a gestão pedagógica, ampliando a oferta de serviços educacionais, incorporando métodos inovadores e engajando a comunidade.
Dessa forma, é possível expandir a oferta educacional pública com qualidade, rompendo com o mito de que formar contratualização seria abrir mão dos princípios de universalização e gratuidade. As poucas experiências nacionais se destacam por mostrar como arranjos colaborativos podem atender às necessidades da sociedade sem depender exclusivamente da estrutura governamental tradicional.
Neste artigo, vamos explorar três experiências brasileiras: o Projeto Somar, em Minas Gerais, o Liceu Coração de Jesus, em São Paulo, e a Aldeia Lumiar, no Rio Grande do Sul, para discutir as potencialidades e os desafios dessas contratualizações.
Como são as contratualizações no campo da educação?
Em linhas gerais, as contratualizações na educação buscam a delegação a entidades externas de parte das atribuições escolares, que podem englobar desde serviços de apoio (merenda, limpeza, infraestrutura e segurança) até a própria gestão administrativa e pedagógica. Essas atribuições são feitas mediante instrumentos formais como os Termos de Fomento e os Termos de Colaboração.
Diferentemente de contratos meramente administrativos, como a compra e gestão da merenda escolar, a parceria que inclui a gestão pedagógica é mais complexa, envolvendo:
- Gestão de estratégias pedagógicas, projetos de aprendizagem e avaliação por competências, sempre respeitando diretrizes estaduais e/ou municipais e a Base Nacional Comum Curricular.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento que define os direitos de aprendizagem e desenvolvimento de todos os alunos da educação básica no Brasil. Ela orienta a elaboração dos currículos das redes de ensino e das escolas públicas e privadas. A BNCC estabelece competências e habilidades essenciais da Educação Infantil ao Ensino Médio. Seu objetivo é garantir equidade e qualidade na educação em todo o país.
- Financiamento per capita ou por resultado: recursos públicos acompanham o número de alunos ou o cumprimento de metas acordadas, alinhando incentivos ao desempenho e qualidade da educação.
- Mecanismos de accountability: para garantir a qualidade do serviço prestado, os contratos devem prever a produção de relatórios periódicos, fiscalizações nas escolas, pesquisas de satisfação e indicadores de aprendizagem, garantindo maior transparência.
Ressalta-se ainda que, independentemente dos arranjos organizacionais e projetos pedagógicos instituídos em parceria com a gestão pública, os parceiros privados precisam garantir a gratuidade e universalização da educação. Apesar da gestão privada, as escolas devem permanecer públicas e gratuitas, com matrícula aberta à comunidade local.
Dessa forma, as contratualizações educacionais oferecem maior flexibilidade operacional e potencial para inovações pedagógicas, porém exigindo forte capacidade de regulação e acompanhamento por parte do Estado.
Agora, vamos conhecer os três exemplos de destaque no Brasil!
Projeto Somar (Minas Gerais)
Lançado como piloto em 2022 em três escolas estaduais (Coronel Adelino Castelo Branco, Francisco Menezes Filho e Maria Andrade Resende), o Projeto Somar utilizou Termos de Colaboração (um para cada unidade escolar) para firmar parcerias com a Associação Centro de Educação Tecnológica do Estado da Bahia, uma Organização da Sociedade Civil (OSC) na gestão compartilhada das escolas.
Em termos gerenciais, a grande inovação do Projeto Somar foi estabelecer um arranjo organizacional híbrido, com gestão administrativa e pedagógica da OSC parceira, porém mantendo, ao mesmo tempo, um diretor, um vice-diretor e um secretário presentes em cada uma das escolas. Dessa forma, o poder público manteve seu papel de fiscalizador das atividades realizadas na escola.
Outras grandes inovações do programa incluem:
- Apoio à governança: colaboração entre Estado e OSC na formação e ativação do colegiado escolar, gestão de contratos de manutenção e articulação com famílias e comunidade para garantir confiança no modelo de parceria nas escolas.
- Autonomia metodológica: a OSC pode implementar práticas pedagógicas inovadoras, desde projetos interdisciplinares até uso de novas tecnologias educacionais.
Os resultados do projeto piloto foram expressivos: na Escola Francisco Menezes Filho, a aprovação saltou de 62% para 93%, a frequência subiu de 95% para 98% e a reprovação caiu de 8,5% para 4,6%; a participação familiar em reuniões passou de 23% para 34%. Com esses ganhos, o governo de Minas planeja expandir o Somar para até 80 escolas, incluindo Ensino Fundamental, Médio e EJA, mantendo-as públicas, gratuitas e vinculadas ao currículo estadual.
Liceu Coração de Jesus (São Paulo)
Em 2022, a iminência de fechamento do histórico Liceu Coração de Jesus, no centro de São Paulo, motivou a Prefeitura a firmar um Termo de Fomento com a Inspetoria Salesiana, garantindo a oferta de educação pública em tempo integral dentro da estrutura privada da organização. Neste modelo, observam-se:
- Gestão pedagógica e administrativa completamente delegada à rede Salesiana, que adaptou a grade curricular e os horários das aulas para o formato integral.
- Financiamento per capita: a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo repassa um valor fixo por aluno matriculado, cobrindo custos de professores contratados via CLT, infraestrutura, alimentação e material didático.
- Dispensa de chamamento público: devido à urgência, falta de outras saídas para oferecer ensino em tempo integral e à expertise prévia da OSC em gestão escolar, a contratação ocorreu sem edital, conforme exceções do MROSC.
- Avaliação e controle: o município acompanha resultados por meio de indicadores como a Prova São Paulo e pesquisas de satisfação junto a pais e comunidade.
Em poucos meses, o Liceu voltou a atender 575 estudantes em tempo integral, desafogou redes vizinhas e apresentou ganhos iniciais de aprendizagem, além de elevada aprovação da comunidade local. Esse caso ilustra como a rapidez de implantação e o aproveitamento de infraestrutura ociosa podem ser decisivos em contextos de emergência, ao custo de menor competição no processo de seleção.
Aldeia Lumiar (Porto Alegre)
A Aldeia da Fraternidade é uma instituição com 60 anos de atuação social, dedicada ao acolhimento de crianças abandonadas e educação por meio de uma escola comunitária no terreno da Aldeia. Em 2019, ela passou por uma reconfiguração institucional, transformando-se na Aldeia Lumiar, uma escola de Ensino Fundamental. A transformação se deu por meio de um Termo de Fomento com a Prefeitura de Porto Alegre, contando com a metodologia “currículo em mosaico” do Instituto Lumiar. A característica mais interessante dessa parceria é seu modelo de gestão tripartite:
- A Prefeitura de Porto Alegre repassa um valor fixo por aluno matriculado por mês e se ocupa da fiscalização e do monitoramento da qualidade do ensino.
- A Aldeia da Fraternidade contrata os professores via CLT, realiza captação de outras fontes de recursos privados (leis de incentivo, bazar e doações) e operacionaliza o funcionamento da escola.
- O Instituto Lumiar cede gratuitamente a plataforma pedagógica, as tecnologias que compreendem sua metodologia de ensino e garante a formação continuada dos professores.
Esse modelo demonstra como organizações de base social podem se associar a organizações com fins lucrativos para alavancar recursos locais e expertise metodológica, com o objetivo de melhorar a qualidade da educação. Para conhecer mais sobre o contrato assinado entre a Prefeitura de Porto Alegre e a Aldeia da Fraternidade, clique aqui!
Desafios e Oportunidades
A análise dos casos de Minas Gerais, São Paulo e Porto Alegre mostra que contratualizações com gestão pedagógica delegada oferecem um conjunto consistente de oportunidades para a educação pública. Em primeiro lugar, destacam-se os ganhos em inovação pedagógica, com parceiros privados e organizações da sociedade civil implementando metodologias ativas, projetos interdisciplinares e modelos de avaliação por competências, algo que encontra mais resistência nos sistemas tradicionais. Além disso, a flexibilidade administrativa desses arranjos permite responder com agilidade a crises e necessidades emergenciais, como no caso do Liceu Coração de Jesus, em que uma parceria evitou o fechamento de uma escola histórica e rapidamente ofertou ensino integral a centenas de alunos.
Outro potencial está no engajamento comunitário. Em modelos como o da Aldeia Lumiar, a proximidade entre a organização gestora e o território fortalece o vínculo com as famílias e amplia o sentimento de pertencimento à escola. Por fim, o uso de financiamento per capita ou baseado em metas contribui para alinhar recursos financeiros a resultados concretos, criando incentivos à eficiência sem abrir mão da equidade.
Por outro lado, essas experiências também expõem desafios importantes. O primeiro deles é a capacidade regulatória do Estado. A contratação de parceiros privados para gerir escolas exige que as secretarias de educação disponham de equipes técnicas preparadas para elaborar bons contratos, estabelecer metas claras e fiscalizar sua execução de maneira contínua e transparente. Sem esse aparato institucional, há risco de desvio de finalidade ou captura da política educacional.
Além disso, existe uma assimetria significativa entre as OSCs. Enquanto as envolvidas nos três projetos citados possuem ampla experiência, acesso a redes de financiamento e capacidade de mobilização social, outras têm dificuldades de escala e gestão. O que pode comprometer a qualidade dos modelos de parceria.
A replicabilidade em larga escala também é um ponto sensível. À medida que o número de escolas contratualizadas aumenta, torna-se mais complexo coordenar contratos com diferentes organizações, metodologias e metas. A tensão entre padronização (para facilitar o controle) e autonomia (para fomentar inovação) requer soluções institucionais sofisticadas, como núcleos de avaliação independentes e marcos regulatórios bem desenhados.
Em síntese, a gestão pedagógica delegada a parceiros privados, quando embasada em marcos legais adequados e acompanhada de mecanismos rigorosos de accountability e compromissos com resultados educacionais concretos, oferece instrumentos relevantes para expandir e qualificar a educação pública. Esses modelos não substituem o papel do Estado, mas o potencializam, permitindo testar soluções em pequena escala antes de decisões amplas de política educacional. Para avançar, é fundamental fortalecer capacidades governamentais de regulação e fiscalização e consolidar uma cultura de avaliação e aprendizagem institucional.
Para aprender mais sobre contratualizações e seu potencial de inovação no setor público, acesse o Mapa da Contratualização!
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