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Governança Corporativa e Gestão Pública X: Resiliência Organizacional pela abordagem IAD

Publicado em: 12.07.24 Escrito por: Marcos Antonio Rehder Batista Tempo de leitura: 8 min Temas: Governança Compartilhada, Modernização da Administração
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Até agora esta série se ocupou em criar paralelos entre os parâmetros normativos de Governança Pública no Brasil, muito bem sistematizados no documento do TCU de 2020 (e sua versão da RGB adequada à realidade municipal, do mesmo ano) utilizado em praticamente todos os nove conteúdos anteriores, e os princípios de Governança Corporativa propostos pelo IBGC, alinhados aos principais parâmetros recomendados por agências internacionais multilaterais (como a OCDE). Por maior profundidade e critério que possa apresentar, uma “receita de bolo” desenvolvida por um Tribunal de Contas prioriza aspectos ligados a sua principal “atividade fim”, a auditoria de conformidade com a lei, a Compliance, por mais que Governança seja algo bem mais abrangente que isso – e acredito que ao longo da série tenha-se demonstrado que Compliance é só um aspecto da Governança. O objetivo da administração pública não é estar em conformidade com a lei: isso é meio, e não fim; objetivo é promover impactos positivos na sociedade e reforçar a legitimidade do governo através disso.

Uma das abordagens mais antigas sobre Governança  – e que utiliza diretamente este termo – é a Institutional Analysis and Development (IAD), gerada a partir do final dos anos 1950 sob liderança da cientista política estadunidense Elinor Ostrom, ganhadora no Nobel de Economia de 2009. A base da IAD está em como garantir que vários atores que utilizam uma fonte comum de recursos (como hidrográficos, por exemplo) se autoregulem, de modo que o façam sem que esta fonte chegue a limites críticos de escassez – ou mesmo, se esgote -, o que vale para o orçamento público. Conseguir tal feito exigiu enfrentar o pressuposto de que haverá sempre um ator, ou um conjunto de atores, que não respeitará os limites necessários e usará mais este recurso do que ele é capaz de se renovar, fenômeno que ficou popularizado por Garret Hardin como a “Tragédia dos Comuns”. Enfim, como a governança pode tornar possível a cooperação, mesmo entre competidores? Afinal, os mais variados setores da sociedade possuem suas demandas específicas e competem por uma fatia do orçamento para que estas sejam satisfeitas.

O chamado “Dilema dos Prisioneiros” consiste em um bom ponto de partida para começarmos a entender tal problema. Imagine dois assaltantes que agiam em conjunto e que são presos em suas respectivas residências, postos em isolamento até o interrogatório. Se ambos negarem os crimes, pegam uma pena de 1 ano; se um confessar e o outro não, quem confessar sai livre e o outro pega 6 anos (delação premiada); se os dois confessarem, pegam 2 anos de prisão. Em outras palavras, se houver confiança e cooperação entre eles, os dois pegam só um ano, mas a tendência é que os dois confessem por não terem como estabelecerem esta cooperação, sem contar que se pensarem de modo egoísta, ambos tem ainda a esperança do outro não confessar, e quem confessou (traiu) voltar livre, leve e solto para o conforto de seu lar. Pensando deste modo, o melhor é não cooperar. Mas vamos recolocar este mesmo princípio em um dilema de políticas públicas.

Suponhamos que em um município haja um fundo conjunto das áreas de saúde esporte destinado à saúde integral da população idosa, e estes recursos sejam distribuídos conforme as áreas de abrangências das UBS’s, onde são formados conselhos comunitários que decidem sobre como o dinheiro será usado. Em uma UBS específica se estabelece um conflito no conselho, onde metade dos representantes querem que todo o dinheiro (100) seja gasto com medicamentos, outra metade dos representantes querem que tudo (100) seja gasto em atividades esportivas e lúdicas para idosos. Se os grupos conseguissem cooperar entre si, poderiam não apenas dividir os recursos em metade para medicamentos (50) e a outra, para atividades (50), como ao demonstrar uma boa integração comunitária para o uso harmônico de recursos, conseguem mais recursos de outras fontes, chegando à um total de 70 para medicamentos e 70 para atividades. Mantendo-se na posição não colaborativa, não chegariam a um acordo e viriam apenas os recursos mínimos previstos para ambas as atividades em caso de não haver formação de maioria, 30 para cada uma. O medo de cada um dos lados é que, caso um aceite tentar cooperar e dialogar, o outro pode não cooperar e cooptar apoiadores do lado adversário, ficando com todos os recursos. Este dilema pode ser representado conforme tabela (matriz de payoffs) abaixo.

Atividades/Remédios Querem Remédios
Querem atividades Cooperar Não Cooperar
Cooperar 70, 70 0, 100

Considerando que o desafio de fazer com que as partes consigam cooperar no sentido de atingir o melhor resultado possível para todos os atores consiste no problema central da Governança, a análise proposta pela IAD parte da atenção sobre 7 aspectos do cenário exposto no quadro acima (quarto slide do vídeo carregado ao final deste texto), que Ostrom chama de componentes da “situação/arena de ação”:

  1. Participantes: no caso, número de participantes/grupos, que são dois.
  2. Posições: avaliar o poder de influencia de cada participante/grupo, pois se um tiver maior poder de pressão, será mais difícil fazê-lo aceitar um acordo.
  3. Estratégias: cooperar ou não, são as duas possibilidades estratégicas.
  4. Consequências: o quanto um ganhar em cada estratégia, levando em consideração as escolhas do outro; por exemplo, se um cooperar e o outro não, quem não cooperou ganha tudo e quem tentou cooperar perde tudo.
  5. Controle Social: como situações reais acontecem entre atores que irão continuar convivendo, é possível que estes não apresentem a posição absolutamente egoísta, pois há consequências públicas de longo prazo, como falta de confiança, e o controle social vem tanto do aprimoramento dos mecanismos de participação quanto da própria pressão social sobre quem ganha reputação de “traidor”.
  6. Informação: deixar bem claro que se chegarem à um acordo, ao invés de ficarem com 50 cada um, poderão ter 70, por isso é importante já ter consistência sobre de onde pode vir estes recursos. Outra informação que poderia ser relevante neste caso é que as atividades físicas costumam reduzir a demanda por medicamentos.
  7. Custos e Benefícios: se apenas um cooperar, ao todo a comunidade terá 100 de recursos; se nenhum cooperar, terá 60; mas se ambos cooperarem, seriam 140.

Acredito que deve ter ficado bem claro que a conformação de cada um destes 7 critérios para a avaliação depende do nível de confiança entre os atores, se é possível ou não chegarem à um resultado de ganha-ganha. Podemos dizer que os 4 princípios de Governança que foram tratados até aqui simplesmente são os meios através dos quais esta confiança torna-se possível. Como pode ser visto abaixo, Ostrom define 5 princípios de Governança (terceiro slide do vídeo), praticamente os mesmos do IBGC:

  1. Eficiência Econômica (Transparência de objetivos e fluxos financeiros em tempo real);
  2. Equidade/equivalência fiscal e distribucional (Justiça);
  3. Adaptabilidade, resiliência e robustez;
  4. Prestação de contas (Accountability);
  5. Conformidade com a moralidade geral.

Além de concentrar a questão da transparência das operações no âmbito econômico (afinal, é uma abordagem microeconômica), entra um fator até então ausente entre os princípios do IBGC de 2015 (e, por consequência, do TCU), mas que entrou nas modificações de 2023, a serem tratadas no próximo conteúdo: o nível de resiliência ganho com a legitimidade conquistada via aumento da confiança. Em outras palavras, adaptabilidade e resiliência são elementos ganhos com o bom cumprimento dos demais 4 princípios de governança segundo a IAD, e que estimulam os mais diversos setores da sociedade a não se digladiarem entre si e buscarem um acordo, na medida em que um modus operandi se mantém ao longo do tempo, com regras acordadas entre as partes, com punições efetivas, ao mesmo tempo em que quem cumprir o combinado pode sentir que o mais vantajoso é ter uma cooperação segura, de modo que a comunidade seja capaz de enfrentar os mais variados dilemas que possam surgir. É papel do gestor público conduzir este processo de fortalecimento da sociedade que governa.

O objetivo da introdução à este que foi o último dos 9 conteúdos feitos em 2020 foi promover um exercício em torno dos conceitos de IAD apresentados no vídeo abaixo, utilizando uma tabela de jogo como a apresentada acima, metodologia usada por Ostrom para dar sentido ao seu quadro conceitual. Os próximos 2 conteúdos, que fecham a série “Governança Corporativa e Gestão Pública”, não serão acompanhados de vídeos, e tratarão das mudanças no código do IBGC de 2023 e, finalmente, sobre a atual ferramenta de avaliação de governança do TCU, o iESGo.

Segue o último vídeo da série, em breve virão os 2 últimos textos!

 

E você, gestor? Já conhecia a abordagem Institutional Analysis and Development (IAD)? Deixe seus comentários abaixo, queremos saber! Aproveite e confira os últimos textos da série Governança Corporativa e Gestão Pública!



*Esse conteúdo pode não refletir a opinião da Comunitas e foi produzido exclusivamente pelo especialista da Nossa Rede Juntos.

Artigo escrito por: Marcos Antonio Rehder Batista
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