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Políticas Públicas Upstream

Publicado em: 18.08.22 Escrito por: Flávio Emílio Rabetti Tempo de leitura: 11 min
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Políticas Públicas Upstream

Foto por Brett Jordan on Unsplash

Por Flávio Rabetti | Diretor de Convênios e Contratos da Prefeitura Municipal de Campinas (SP) e colaborador da Rede Juntos

Pauta de grande relevância na gestão pública refere-se ao tema de Políticas Públicas, tanto no arcabouço doutrinário como nas inúmeras dimensões trazidas ao decorrer dos anos para avaliar a dinâmica pelo tema.

No que tange aos conceitos, vejamos alguns que tratam a política pública em uma ação de governo ou até mesmo omissão visando o interesse público a ser concretizado ou problema a ser solucionado.

Muito se discute a respeito da sua formulação, implementação, efetividade e avaliação diante de diversos problemas simples ou complexos. Porém o caráter dessas políticas em sua grande parte é ostensivo, ou seja, dispende-se recursos para solucionar problemas já em evidências a serem resolvidos.

Neste sentido, o presente artigo visa demonstrar modelos de políticas públicas que buscam resolver problemas antes que apareçam. Esse modelo chamado de Upstream trazido pelo autor Dan Heath (Heath, 2021) tem como finalidade a mudança de cultura nas organizações.

O termo trazido por Heath nos faz refletir acerca dos desafios que o tempo todo temos à nossa volta (no caso em tela – os desafios na gestão pública para a solução dos problemas) e o quanto somos reativos a eles. Acabamos embarcando em uma viagem “rio abaixo” em seguirmos o fluxo sem questionar a origem dos problemas, é como se ao resolver tudo o tempo todo, não resolvêssemos nada.

Assim, parar tudo, fazer-nos conscientes de onde estamos e usarmos o leme por ser uma forma simples – e quase óbvia – de mudarmos não só a forma de pensar política pública, mas nossa vida em sociedade também.

As políticas Upstream são o conjunto de esforços para prevenir que problemas aconteçam enquanto as ações de downstream se limitam a reagir a essa ocorrência. Essa mudança visa despender recursos públicos e tempo para utilizar-se de meios na prevenção. Em virtude disso o engajamento com os envolvidos (órgão de controle, sociedade civil, judiciário) deve ocorrer uma vez que a formulação de ações no sentido de prevenção muitas vezes muda o sistema ora vivenciado.

Ressalta-se também que a solução upstream nem sempre é a correta, e certamente não é o caso de abandonarmos o trabalho downstream. A questão é que nossa atenção é grosseiramente assimétrica. Estamos tão focados nos problemas que deixamos de investigar o motivo de sua ocorrência.

Vejamos alguns exemplos práticos e evidentes a respeito do tema, inicialmente trazendo o sistema de saúde dos Estados Unidos, com um orçamento de US$3,5 trilhões, quase um quinto da economia norte-americana, que é projetado quase exclusivamente para a reação em vez de prevenção.

Como apontam Bradley e Taylor em um livro chamado The American Health Care Paradox (O Paradoxo do Sistema de Saúde norte-americano, em tradução livre), o que é realmente distinto sobre a abordagem dos EUA em relação à saúde não é tanto a quantidade de gastos, mas sua forma. Comparado a outros países, os EUA gastam mais dinheiro para curar as doenças das pessoas e menos para mantê-las saudáveis.

Como resultado deste modelo, o sistema de saúde dos Estados Unidos se destaca pelo tratamento de pacientes com doenças graves, como câncer ou doenças cardíacas. É por isso que muitas pessoas se deslocam dos seus países para tratar suas doenças nos EUA.

O país é líder mundial em prótese de joelho e cirurgias de ponte de safena, também no número de pessoas que vivem com transplantes renais e na porcentagem de idoso que recebem prótese e quadril, tudo isso é fruto do investimento em ações downstream.

Vejamos o outro lado, cujo gastos em comparação ao EUA são semelhantes em porcentagem do PIB, o que torna uma comparação interessante. Falamos da Noruega onde a cada US$1 gasto downstream, são gastos incríveis US$2,50 upstream. Quais as consequências dessa diferença de prioridades da Noruega? Tome o parto como exemplo. Uma grávida norueguesa não pagará nada por todas as consultas pré-natais. Nada para o parto. Nada para as visitas após o nascimento do bebê. Está tudo coberto.

Quando a criança fez seu primeiro aniversário, tem garantido um lugar em uma creche de alta qualidade em tempo integral e os pais são cobrados em uma escala móvel de, no máximo, algumas centenas de dólares por mês. E é enviado um pagamento mensal às famílias de pouco mais de US$100 por mês para a criança, até completarem 18 anos. Esse dinheiro pode ajudar a pagar fraldas, comida ou material escolar. Ou ser usado para iniciar um fundo de poupança para a faculdade – embora isso seja um tanto inútil, já que na Noruega elas são gratuitas.

Qual país tem a população mais saudável: Noruega ou Estados Unidos? Não é uma decisão difícil. Em mortalidade infantil, a Noruega tem o 5º melhor resultado internacional; os EUA, o 34º. Em expectativa de vida, a Noruega está em 5º; os EUA, 29º. Menos estressados: a Noruega está em 1º e os EUA em 21º. Felicidade – a Noruega tem o 3º lugar já os Estado Unidos o 19º.

Ressalta-se aqui que ambos os países investem o mesmo em saúde (upstream e downstream) em porcentagem do PIB. A Noruega não gasta mais, e sim de forma diferente. Enquanto os norte-americanos aumentam os agudos, a Noruega aumenta os graves. A escolha dos EUA como nação tem sido melhorar cada vez mais na ação pelos problemas, já a Noruega se despende em prevenir que o problema ocorra¹.

Vamos conhecer o caso de Deborah Delage, ativista, que despertou o olhar sobre o modelo upstream quando sua filha nasceu na cidade de Santo André em São Paulo. Em agosto de 2003, Delage, foi visitar sua obstetra para exames de rotina. Quando chegou, sua médica disse que ela estava em trabalho de parto – sentia contrações tão leves que não as levava a sério. Recebeu uma dose de oxitocina, uma droga que faz com que os músculos do útero se contraem para acelerar o parto. Dez horas depois, a médica decidiu fazer uma cesariana e sua filha nasceu.

A ativista estava agradecida pela sua saúde e de sua filha, mas conforme refletia sobre a experiência ficava cada vez mais inquieta. Por que eles precisam acelerar o parto? Por que sua médica parecia tão ansiosa para fazer uma cesariana?

Foi então que descobriu um fórum de discussão na internet em que mães compartilham suas experiências de parto, e muitas tiveram algo parecido com ela: apesar de quererem parto natural, acabaram tendo cesáreas. Muitas delas, na verdade, relataram que seus médicos as desencorajaram de fazer o parto natural.

Neste sentido, ao pesquisar sobre as estatísticas a respeito dos partos, Delage verificou que a taxa de cesarianas variava pouco em todo mundo: 18% na Suécia, 25% na Espanha, 26% no Canadá, 30% na Alemanha e 32% nos Estados Unidos (nascidos vivos em 2016). No Brasil, em 2014, a taxa era de 57% em 2014 (uma das mais altas do mundo). No sistema privado há uma enorme discrepância passando para 84% das crianças que nasceram de cesárea.

Este tipo de cirurgia é de grande porte, traz risco tanto para a mãe quanto para a criança. Em certas situações, pode salvar uma vida. Mas a uma taxa de 84% está claro que o procedimento não era usado para afastar risco ou perigo.

A professora de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP, Simone Diniz, comentou sobre as percepções dos médicos sobre o parto natural à revista Atlantic. “Existe a ideia de que a experiência do parto deve ser humilhante. Quando as mulheres estão em trabalho de parto, alguns médicos dizem: ‘Quando foi para fazer você não reclamou, mas agora que está aqui, você está chorando’.”

Diante desse abuso verbal, poderíamos justificar que se trata de falas sazonais, porém, não é, de acordo com as brasileiras. Em uma pesquisa com 1.626 mulheres que deram à luz no Brasil, cerca de um quarto delas disse que o médico fez graça sobre seu comportamento ou as criticou por chorar de dor. Quase a metade disse que, durante o parto, se sentiram “inferiores, vulneráveis ou inseguras”.

Foi em virtude desses casos que a ativista criou o grupo Parto do Princípio, no qual relatou os diversos problemas e suas causas sistêmicas, acrescentando ainda a forma esmagadora de mulheres que queriam o parto natural.

Os documentos foram enviados à diversos envolvidos, desde o Ministério Público Federal até a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Foi diante deste engajamento que a ativista conseguiu adeptos em que projetou no sistema a exigência de cesariana eletiva somente com 40 semanas de gravidez, e a taxa de parto natural disparou em 40%.

Ainda há um longo caminho a percorrer, pois o trabalho chegou a uma pequena fração de 6 mil hospitais do Brasil. No entanto, há sinais de que o sistema de saúde está pronto para essa mudança.

A ativista foi defensora do sistema upstream, consertando um problema que não foi ela quem criou, pois não tratou o anormal como normal no caso das cesarianas.

São diversos os casos em que podemos debruçar e entender o quanto a política pública upstream é qualitativa, deste sistema na segurança pública nas escolas como atendimento e acompanhamento psicológico até a criação de equações em lugares vulneráveis para desacelerar ou interromper o comportamento agressivo dos jovens – Desafio de Inovação do Laboratório Criminal (criado em 2009 pela Youth Guidance).

O aprofundamento sobre o tema é extenso, interessante e sobretudo efetivo diante as políticas qualitativas já empregadas. Sintetizando o tema para o presente artigo, algumas ponderações práticas na sua implementação devem ser observadas.

A visão para criação de políticas refere-se às barreiras a superar, pois, mudanças de cultura causam estresse e esses devem ser mensurados para não ocorrer nenhum tipo de anarquismo em virtude da mudança.

As barreiras são divididas em três – cegueira, falta de propriedade e cavar o túnel. Inicialmente a primeira barreira é a visão da sociedade e envolvidos com o problema, pois não conseguem ver o problema ou o consideram inevitável.

Partindo dessa premissa de visão, a política upstream deve ser elaborada demonstrando o oposto acerca do que pode ocorrer (exemplo da vacinação em massa para Covid-19 é um caso positivo na mudança de visão, principalmente em países que não são adeptos à vacinação).

A segunda barreira é a falta de propriedade, no caso da ativista dos partos naturais, o problema no sistema não era dela, mas independente disso, houve a mobilização social acerca do tema e a mudança do sistema (a empatia e a solidariedade são ferramentas de excelência para essa barreira).

O terceiro condiz mais com questões de prioridade em nível de governança e de governo – cavar o túnel. Já a pauta só será discutida se o problema ocorrer e enquanto não ocorre as decisões de governança sempre são “não consigo lidar com isso agora”, reformas necessárias a saúde econômica do nosso país está dentro desta barreira, uma vez que congressistas e o executivo federal não pautam o que necessariamente importam para a nação, agindo de forma downstream tão somente.

Desde mudanças na burocracia das políticas públicas até a alteração na visão dos sistemas está no desafio da aplicação do modo upstream. Ter a visão em antecipar o futuro e pronto para moldá-lo exige dedicação e a reunião das pessoas certas (criação de um mapeamento estratégico).

Por fim e não menos importante, a pretensão das políticas públicas Upstream é o envolvimento em soluções práticas para prevenir problemas na sociedade em vez de reagir a eles. Quantos problemas em nossas vidas e em sociedade toleramos simplesmente porque nos esquecemos que podemos consertá-los?

 

*O presente artigo reflete as opiniões pessoais do colaborador.

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¹Necessário observar que a homogeneidade dos países é diferente, nesse sentido, o legado de desigualdade e racismo no EAU torna-se mais difícil em comparação a Noruega.



*Esse conteúdo pode não refletir a opinião da Comunitas e foi produzido exclusivamente pelo especialista da Nossa Rede Juntos.

Artigo escrito por: Flávio Emílio Rabetti
Diretor de Captação de Recursos e Convênios Governamentais
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